Marcha das vadias: carta resposta

O amigo e colaborador Alexandre Kumpinski indignou-se com o texto “Marcha das Vadias: liberdade feminina ou putaria?” do Mauro Ampessan publicado no portal Facool. Resolveu, então, escrever uma carta-resposta apresentando seu ponto de vista do texto e das reivindicações da Marcha das Vadias para tentar esclarecer algumas confusões e dúvidas que surgiram após a marcha. Leia abaixo:

Ao Mauro Ampessan, autor de “Marcha das Vadias: liberdade feminina ou putaria?” (publicado no dia 29/05/2012)

Li o teu texto e fiquei muito impressionado. Tanto que não consegui deixar de vir aqui te escrever essa carta aberta pra tentar te mostrar o quanto eu acho que é pura bobagem (das vergonhosas, até) o que tu andou escrevendo sobre o assunto.

Vou ter que fazer um esquema meio perguntas e respostas aqui pra conseguir comentar tudo. Vou destacar partes do teu texto pra tecer comentários a partir deles, ok? Vejamos:

MARCHA DAS VADIAS: LIBERDADE FEMININA OU PUTARIA?

Já no título tu mostra que não tá entendendo a que se propõe a Marcha das Vadias, colocando ‘liberdade feminina’ em contra-ponto a ‘putaria’. Uma das principais questões levantadas na marcha é justamente a necessidade de extinguir a mentalidade de que uma mulher que se comporta sexualmente como bem entender é uma puta (ou vadia). “Se ser vadia é ser livre, então eu sou vadia” foi uma frase muito usada nos cartazes da marcha e explica com clareza esse ponto – e mostra a coerência do nome da marcha na tentativa de esvaziar de maus significados o termo ‘vadia’. É o que acontece bastante com torcidas de futebol, que acabam assimilando um xingamento criado pela torcida adversária até que se torne uma forma de identificação sem caráter pejorativo (por exemplo, os colorados se auto-proclamarem orgulhosamente de ‘macacos’ ou os palmeirenses de ‘porcos’). Sendo assim, se deixarmos de lado o uso pejorativo/preconceituoso do termo ‘putaria’, interrogar “liberdade feminina ou putaria” é o mesmo que interrogar “putaria ou putaria”, que é o mesmo que “liberdade feminina ou liberdade feminina”, sacou? Ou seja: teu título não faz sentido, a não ser que tu tenha sido preconceituoso logo na primeira linha do texto, que é o que, afinal de contas, parece que tu foi.

Entretanto, o que se vê, não só na Marcha das Vadias, mas também nas que defendem os direitos a homossexuais, é muita apelação e falta de engajamento verdadeiro, falta de informação por parte dos próprios manifestantes, falta de seriedade em relação ao assunto.

Apelação: imagino que tu esteja te referindo a mostrar os peitos, certo? E, no caso dos homossexuais, beijar na boca em público ou dançar fantasiado, né? Se for isso mesmo, vou falar sobre mostrar os peitos mais adiante no texto, quando tu explana mais sobre o assunto.

Falta de engajamento verdadeiro: se sair espontaneamente nas ruas defendendo um discurso coerente e ainda (infelizmente) muito necessário não é engajamento verdadeiro, então eu não sei o que é.

Falta de informação: vi só cartaz com questionamentos e exigências muito sensatas na marcha. Coisa de gente bem informada.

O que se viu, considerando-se a maioria da classe manifestante e sua faixa etária, na verdade, foi um pedido de tolerância a atitudes apelativas, a manifestações públicas que acabam ferindo o direito que outros têm de poupar-se do que a mídia chama de “fortes imagens” e que termina por censurá-las ou jogá-las nas altas horas da madrugada.

Aqui já tenho quase certeza de que tu tá falando de mostrar os peitos. Pois bem: uma mulher mostrar os peitos não deveria ser considerado apelação, não deveria ser censurado e muito menos deveria ser proibido. As mulheres deveriam poder mostrar os seus peitos onde e quando bem entendessem. Por quê? O motivo mais simples é bem simples mesmo, mas já totalmente suficiente: porque os homens podem. E um dos pontos principais aqui é defender uma verdadeira igualdade entre os sexos, que ainda não existe. Depois disso, pensa numa burca e em toda a violência que ela representa `a liberdade de uma mulher decidir sobre o seu próprio corpo. Pois bem: mostrar os peitos em praça pública é como pedir o aniquilamento final de qualquer burca, sacou?


foto por Fora do Eixo

Nessa passeata vi muita “vadiazinha” querendo ser vadia sem ter que conviver com o peso que esse termo atribui.

Fico até feliz que tu tenha tido coragem de escrever isso. Essa tua postura de desprezo em relação às mulheres que tu chama pejorativamente de vadias ilustra perfeitamente o tipo de postura machista que ainda existe no mundo e que justifica a existência dessa marcha. O que é ser vadia, afinal? É ser mulher e transar com um monte de caras? Qual o problema nisso? Qual o problema da mulher fazer o que ela quiser com a buceta dela? O homem que transa com um monte de mulher é comedor, bonzão. A mulher que faz a mesma coisa é uma puta que não se dá ao respeito. Essa mentalidade é injusta e precisa mudar. Se lá tu viu “muita vadiazinha querendo ser vadia sem ter que conviver com o peso que isso atribui” é porque ser livre não deveria atribuir peso algum a qualquer mulher mesmo. Tu até viu certo, veja só – só faltou deixar o preconceito de lado.

(uma curiosidade: alguma efetividade da marcha já se percebe no teu próprio texto. o pressentimento de que o termo ‘vadia’ talvez já não seja pejorativo o suficiente pra humilhar uma mulher fez tu usar a palavra ‘vadiazinha’, pra não deixar dúvidas sobre a tua intenção agressiva na hora de se referir às manifestantes, percebeu?)

Vi em pouquíssimas uma busca por respeito à integridade feminina, mas na maioria um pedido de tolerância à putaria, o que certamente não combina com o objetivo central da passeata citado anteriormente, e que até mesmo contraria o ideário feminista.

Tudo errado. Essa integridade feminina de que tu fala – a integridade da moral e dos bons costumes, da mulher casta, domada, que não é vadia – nunca foi buscada nessa marcha. Agora, se tu tá te referindo à integridade das mulheres no sentido de elas não quererem ser violentadas física e psicologicamente a partir da lógica de que elas são pessoas de alguma maneira inferiores que não devem ser levadas a sério a não ser na condição de corpo que deve servir sexualmente ao homem, bem, aí tu estaria no caminho. Mas pelo jeito não tá, porque é justamente isso que o ideário feminista que tu citou busca: que a mulher possa se emancipar de vez e ser respeitada de igual pra igual, julgada de igual pra igual, remunerada de igual pra igual, tratada de igual pra igual sempre. E que nos momentos em que se detecte qualquer diferença entre elas e os homens – que existem – que isso não seja usado como argumento pra subjugá-las de alguma maneira.


Uma coisa é respeitar o corpo e o espaço de uma mulher, outra é liberar a promiscuidade pública.

Mulheres mostrando os peitos como um ato político que visa mostrar pra sociedade que já passou da hora de elas serem donas do seu próprio nariz e de terem autonomia em relação ao seu corpo e sua vida não é promiscuidade. Aliás, promiscuidade é um termo que já vêm carregado de uma ideia moralista equivocada de que deve existir um parâmetro social que regule o apetite sexual de uma pessoa (e, na prática, principalmente o de uma mulher).

Vale destacar que ainda existem crianças nesse mundo, mais de 50% são meninas, e ainda queremos que elas vivam etapas e sejam inocentes antes da adolescência. 

Se ver um peito feminino nu fizesse com que crianças perdessem a inocência e deixassem de viver etapas, a amamentação deveria ser rigorosamente proibida.

Seja machista ou feminista, qualquer manifestação que peça uma mudança de atitude da sociedade e de políticas públicas deve antes atentar para sua causa e seus representantes. 

Se há algo que se possa chamar de “manifestação machista” é o que se manifesta diariamente por todos os cantos e não pede mudança nenhuma de comportamento da sociedade. Muito pelo contrário, o machismo gostaria que tudo seguisse sendo como é: a maioria das mulheres acreditando que são apenas seres frágeis, delicados, castos, incapazes de plena autonomia. Enfim, que devem baixar a cabeça pra lógica dominante e continuar a servir os homens conforme a vontade deles.

Albert Einstein disse uma vez: “Não se pode esperar resultados diferentes fazendo as coisas da mesma forma.” Em outras palavras, não use o desrespeito pra pedir mais respeito.

Em nenhum momento a marcha desrespeitou ninguém, a não ser que tu acredite que mulheres lutando por respeito já seja por si só um desrespeito à autoridade do homem. Ou que peitos de fora são desrespeitosos (mas tomara que a essas alturas tu já tenha superado essa babaquice).

E fazer as coisas da mesma forma seria mostrando cartazes com dizeres como “se tu não consegue bancar um jantar caro, por que me convidou pra sair?” ou “a única coisa que homem sabe fazer é ver futebol e coçar a bunda no sofá”. Não, não foi usado nenhum clichê desrespeitoso do machismo propagado por aí, até mesmo por várias mulheres. Não, em nenhum momento as mulheres que marchavam adotaram uma postura de superioridade em relação aos homens, então essa frase do Einstein simplesmente não se encaixa na situação.

por Alexandre Kumpinski