El sur también existe

Daniel Drexler foi entrevistado para a edição 4 do Jornal Tabaré em agosto de 2011. Confira a reportagem de Felipe Martini e Bruna Andrade.
daniel-drexler

Daniel Drexler, músico da Banda Oriental com mais de dez anos de estrada, veio a Porto Alegre neste inverno para apresentar seu Micromundo no palco mais nobre da cidade, o Theatro São Pedro. O guitarreiro aproveitou pra charlar um pouco com o Tabaré sobre o Templadismo, esse Tropicalismo às avessas que oferece seu tijolo à construção de uma identidade comum entre estas terras do pampa, filhas do mesmo céu e da mesma dúvida.

Daniel Drexler : Aqui no Sul tem uma motivação muito forte que vai muito além da música, que tem a ver com coisas que tão acontecendo com a gente, coisas que estamos começando a discutir com o Vitor Ramil, com o Zelito, com o Marcelo Delacroix… Coisas muito interessantes, ligadas a muitas questões históricas, à própria Estética do Frio, ao Templadismo.

***

O que une essas regiões “templadistas”, o Uruguay, o Rio Grande do Sul, a Argentina?

Comecei em 2001, 2002 a falar dessa coisa engraçada que acontece na Bacia do Prata, onde você tem uma fronteira lingüística, três fronteiras políticas, no?, mas a cultura tem como uma comunhão de identidade que transcende as fronteiras. Eu achava isso engraçado e tratei também de pensar se isso tinha a ver com o clima, com essa sensação que a gente tem de estar afastado do resto do mundo, com a melancolia… Numa região que tá na metade entre o Equador e o Polo, a gente sempre procura estar na média, somos gente com muitas dúvidas. O clima tá mudando o tempo todo, você quando acorda de manhã leva um tempo pra decidir com que roupa sair… Eu morei em Israel quando tinha 10 anos, e lá tem nove meses em que não chove. A gente já acorda com uma dúvida… somos gente com muita dúvida, muita melancolia, não sabemos bem o que somos, se somos europeus que estamos aqui ou o quê. Mais o Uruguay que tá aí no meio entre Brasil e Argentina.

Há quem diga que o Rio Grande tá entre o Brasil e o Uruguay…

Sí… a mesma coisa. E eu achei isso um pouco estranho, porque eu comecei, na verdade, pensando muito, mas sem conhecer o RS. Eu sempre tive uma grande admiração pela cultura brasileira e um grande amor pelo país. A gente tirava férias aqui, mas não no Rio Grande. A gente ia pra Santa Catarina, pro Rio ou pra Salvador. E eu adorava música de Jobim, de Buarque, do Caetano, de Gil, Djavan… quase a metade da música toda que eu ouvia era brasileira, mas não era música do Rio Grande. Quando eu comecei a descobrir o Vitor… foi um descobrimento muito forte, eu me dei conta de que eu estava saltando algo que acontecia no meio e que tinha muito a ver com a minha própria história. E aí foi muito forte porque aquela ideia do Templadismo pegou muito na Argentina, também no Uruguay, foi muito discutida lá, com brigas muito fortes… brigas carinhosas, mas brigas. Eu me dei conta de que aqui cumpria um papel quase tão importante quanto o que cumpria no Uruguay, porque na Argentina eles têm sua própria identidade, eles sabem bem quem são. É um país muito grande, poderoso… mas a gente aqui do Uruguay e do Rio Grande têm muita coisa em comum por aquela questão de nunca saber bem onde se pode estar, não?

Me aconteceu uma coisa muito interessante, tem um cara aqui de Porto Alegre, o Lucas Panitz, e ele fez a sua tese de mestrado sobre o Templadismo e a Estética do Frio. Ele disse que aquela tese foi feita buscando como a paisagem se reflete na criação dos artistas da região. Ele pegou uma música minha, uma do Vitor, do Jorge [Drexler, seu irmão], da Ana Prada… e tratava de encontrar os reflexos dessa paisagem na música. Ano passado ele veio falar comigo e me disse “cara, agora vou fazer minha tese de doutorado e vou trocar o tema, vou tratar de ver como as ideias se refletem na criação do espaço”. Entenderam?

Só as palavras…

Ele me disse “tu não acha que depois que tu começou a pensar no Templadismo teu espaço vital mudou?” E, pá! Era isso. Era isso que eu tava sentindo. Para mim agora Montevideo e Buenos Aires e Rosario e Córdoba e Porto Alegre e Pelotas são cidades do meu espaço, tô morando nelas. Ontem foi muito engraçado porque todos os músicos que estavam no teatro, estão todos ligados em outros projetos [conjuntos] agora. Então tá acontecendo uma coisa muito bacana, isso realmente muda a vida da gente. Isso é uma coisa maravilhosa: você tem a capacidade de criar o universo em que você quer viver. Tendo uma ideia e persistindo nela.

Eu tomei uma decisão em 2001, 2002, quando eu já desenvolvia trabalhos na Espanha e tinha a possibilidade de ir morar lá. Eu vi o que acontecia com a vida do meu irmão morando longe da sua região, e achei mais interessante pra mim morar aqui. Morar em Montevideo e romper uma fronteira que existe ali com o Rio Grande, romper a fronteira com a Argentina. É isso que tá acontecendo agora na minha vida.

Tu acha que o RS tende, culturalmente, a se aproximar do Brasil ou do Prata? Porque se de um lado tá a história, a paisagem, a cultura do frio, do outro tá o Estado brasileiro, a mídia. Tu acha que algum lado tá puxando mais forte?

Eu acho que é igualmente importante que o Rio Grande assuma a sua identidade platina e a sua identidade brasileira. Eu não gosto de regionalismos fechados, de tradições fechadas. Eu acho que o potencial do Rio Grande, que é a mesma situação do Uruguay, é reconhecer a capacidade de dialogar com os dois mundos, ter a capacidade de manter um diálogo direto com o Rio, e ter um diálogo direto com Mondevideo e Buenos Aires.

Sobre a questão da quebra do colonialismo cultural.

Ah, sí. Outra coisa que me marcou muito foi morar em Madrid e estar em uma capital central do mundo, uma cidade que está onde foi o império mais importante da humanidade, e perceber a seguridade que a gente tem. “Nós estamos no centro. Vente para Madrid”. E eu senti um pouquinho de inveja daquela situação. Porque eu me criei sempre com aquela sensação de não saber se estou vivendo no lugar correto, e isso influi muito em qualquer coisa que você pense na vida, mas particularmente se você quer fazer uma tarefa criativa. Porque você não sabe o que fazer, se vai copiar um modelo de fora. Na verdade você não gosta da sua própria vida, então você não quer falar da sua vida porque você sente vergonha de ser uruguayo, ou de ser de Porto Alegre. Eu na verdade adoro a minha cidade, é maravilhosa, mas tem sempre essa coisa “eu quero ser parecido a…, parecido a…”. E ao mesmo tempo tem o outro polo, os caras que reagem contra isso, que também é produto desse mesmo problema. Tem uma reação desproporcional, e fica naquela coisa fechada de regionalismo, e “não, não, você não pode tomar a erva desse tipo e…”. Ah, chega, como diz o Vitor: “chega de milonga” (risos). Ontem quando estávamos jantando eu disse pra ele “quero mostrar uma milonga nova que eu fiz” e ele “Dani, chega de milonga, chega de milonga”.

Pra mim foi muito importante descobrir o Manifesto Antropofágico. Quando eu li aquilo eu disse “isso é o que eu quero”. Porque eu adoro os Beatles, eu adoro Björk, por que tenho que escolher uma coisa ou outra? E o que tem de novo no Templadismo e na Estética do frio é que é uma visão urbana, cosmopolita e antropofágica da cultura da Bacia do Prata. Outra coisa que me aconteceu na Espanha é que eu via a possibilidade de desenvolver meu trabalho em Madrid mas também em Barcelona, Valencia, Sevilla, todas diferentes mas ao mesmo tempo com pontos de contato e todas cidades grandes, dialogando. E o que aconteceu no Uruguay? Você só tem Montevideo, depois não tem, o resto das cidades são muito pequenas, não têm força para criar uma identidade. Parece que está em uma sesta permanente. Quando você começa a pensar que tem Montevideo mas também tem Porto Alegre, tem Buenos Aires, Rosario, Cordoba, Santa Fe, o tema muda, muda muito. E Porto Alegre, por ser uma cidade dentro de um país tão grande quanto o Brasil, sabe que pra se posicionar tem que fazer força. Montevideo não tem que fazer nenhuma força, então segue fechada. Eu tinha família aqui em Porto Alegre e eles me contaram que na década de 50 eles iam para Montevideo para ir ao teatro, para ir ao cinema, para comprar roupa, era como ir à cidade grande. Hoje está acontecendo um show do Jack Johnson, e ele veio tocar em Porto Alegre, mas não vai tocar em Montevideo, Paul McCartney tampouco tocou em Montevideo.

É evidente que o Templadismo e a Estética do Frio não se propõem a ser movimentos, mas tu acha que haveria espaço para um movimento?

Eu acho que não, mas pode acontecer. Eu acho que também… tá ruim para falar em Português…

Pode falar em Castelhano.

Se pode falar direto em Castelhano? OK. Yo creo que los tiempos de los ismos también tienen que ver con los procesos históricos, sociológicos, que tienen que ver con el inconsciente colectivo de la humanidad. No es en vano que en la década del 60 o en la década de 50 o principios de siglo pasado hayan aparecido tantos ismos y tanta gente haciendo manifiestos: manifiesto comunista, manifiesto socialista, manifiesto de mayo de 69 [sic], el Tropicalismo… Yo creo que hubo un cambio muy, muy grande en la humanidad que todavía estamos como acomodándonos. No es un momento para que alguien baje con las tablas de la ley del Monte Sinai para decir ‘yo, eso, eso y eso…” Estamos en una etapa donde todo es mucho más caótico y las verdades son más relativas que nunca. Yo por lo menos no me animaría a bajar con un manifiesto. Yo simplemente lo que quiero es plantear mis dudas. Y los textos que hice del templadismo están llenos de dudas, si vos los leés vas a ver que están todos escritos “podría ser que…”, están todos en condicional. Estamos entrando en un etapa donde las grandes verdades se están diluyendo.

por Bruna Andrade e Felipe Martini  /  fotos: Maíra Oliveira