O “estranho” Liniers

“Leiam Ulisses!” diziam Adão Iturrusgaray e Ricardo Siri, o Liniers, em palestra da FestiPoa Literária. A brincadeira com a falta de literatura no evento em questão reveste a insegurança destes cartunistas, o que remete a história do Humor e da criação da linguagem humorística. Chaplin, Irmãos Marx, Jerry Lewis, Woody Allen, Andy Kaufmann, etc. Todos eles criaram suas literaturas a partir do remédio muito usado para  a insegurança: o humor.

A literatura de Liniers, no caso, era a atração que buscávamos para ser matéria de capa da edição passada do Tabaré. O critério jornalístico que superava Jorge Mautner era claro e óbvio: Liniers desembarcou em Porto Alegre uma semana antes. E a atrasada edição passada não teve os desenhos argentinos estampados em cores nas páginas centrais, em virtude da difícil tarefa de sentar com ele por mais de 7 minutos. Mas não por falta de vontade do homem coelho.

Entrevista marcada com assessoria, em veículo dito alternativo, não é entrevista marcada. Isto certamente aprendi nestes dois anos do Jornal Tabaré. Neste caso foi trocada três vezes de horário, naquele bom e velho espirito de camaradagem. A última vez foi deixado para às 19 e 30, meia hora antes da palestra. Mas a injeção de animo veio com a chegada do argentino. Com um gorro verde, a barba por fazer, os óculos projetando minúsculos olhos no fundo das grossas camadas da lente e o sorriso de uma criança envergonhada. Assim conhecemos Liniers no primeiro andar da Casa de Cultura Mário Quintana. Faltando dez minutos para a palestra o porteño simpaticamente nos garantiu una nota ao fim da palestra e antes de sair para beber.

Na palestra, com a graça e desprendimento que sua arte lhe concedeu, Liniers esbanjou bom humor ao lado do escrachado e divertido Adão. Os dois moradores da terra de Maradona se completavam em suas complexas diferenças. Liniers confidenciou que tudo que queria era ser como Adão e seu poder especial de desenhar testículos nas bundas e caralhos gigantes. Mas que infelizmente nasceu com outro superpoder: o de fazer as mulheres dizerem ‘óóóóó’.

A longa palestra amontoada de gente pelo chão foi seguida pela concorrida entrevista. Enquanto uma longa fila de autógrafos nos pressionava e um dos assessores nos dizia “eu curto o tabaré mas a festipoa é prioridade…” conseguimos não mais do que sete minutos com o nosso querido desenhista. E uma sensação de impotência, curiosamente pouco tempo depois que o Leandro e a Natascha representavam o Tabaré no andar de baixo sobre as dificuldades da mídia alternativa ao lado dos colegas do Bastião e dos assalariados do Sul 21.

Assim, segue a entrevista sem cortes com Liniers.

Eu não falo espanhol, vou no português…

– Perfecto!

Tu falou em outras entrevistas que a Mafalda alfabetizou a argentina. A minha impressão é que, pelo menos pra mim, a Mafalda foi uma alfabetização politica também. Queria que tu comentasse isso, do cartum por mais inocente que seja, por ser a primeira coisa que a criança vê, tem isso de iniciar um pensamento politico com as crianças.

– É que o lindo de Mafalda é que tem diferentes níveis de leitura, no? Então um lê, como eu, com 6, 7 ou 8 anos e quando lê é uma coisa, e depois quando lê com 15 é outra, e com 30 é outra… o mesmo se passa com os Simpsons. Me parece que as coisas muito bem feitas tem esta possibilidade de revisitá-las em tua vida. E descobrindo coisas novas. Eu me recordo de uma tira da Mafalda que vi quando criança, que ela chamava uma tartaruga de ‘burocracia!’ e ela vinha lentamente. E eu não entendi que a tartaruga era a burocracia, mas que era um nome para tartaruga, tinha sete anos. Me parece que Quino tem isso, sempre pode ser revisitado.

As tirinhas e os desenhos animados são as primeiras coisas que as crianças leem. E tu, com as tuas tiras diárias, e mesmo não falando em politica, tu acaba tratando politica…

– Eu, com as tiras, não trato de ensinar nada e sim de perguntar, a mim mesmo, tratando de entender o planeta. Então não gosto muito dos escritórios ou as pessoas que vivem dizendo que tem resposta pra felicidade, “faça isso!’ . Eu gosto da gente que pergunta. E para mim Macanudo é isto, um grande signo de perguntas , por que tudo me intriga me tem a curiosidade. Me gusta perguntar!

Tu e o Adão falaram muito na palestra, sobre os filhos de vocês, e eu me lembrei duma frase do Picasso que ele diz que passou a infância tentando desenhar como adulto e o resto da vida inteira tentando desenhar feito uma criança. Tem muito isso da criança no teu trabalho?

– Sabe o que é isso? As crianças desenham sem medo! Picasso quando se transforma num grande pintor com 10 anos, pintava como os outros. Quando começou a pintar como ele mesmo se transformou em Picasso. As crianças quando desenham, desenham como eles mesmos, não estão copiando como se desenha. E ao mesmo tempo desenham sem medo. E com Picasso era o mesmo. Me parece que isto da muito liberdade na hora de trabalhar plasticamente.

E esse é objetivo? Tentar ser criança na hora de trabalhar? Sem medo?

– Eu encontrei um meio de dialogar. Encontrei meu próprio idioma.  E me parece que a busca dos artistas é buscar seu próprio idioma. E pode inventar o seu!  Eu inventei, Picasso inventou, Chaplin inventou. Os dois são melhores que eu, mas todos buscamos encontrar nossa própria linguagem.  E você atira para as pessoas, e vê o que elas te respondem.

E essa brincadeira, que tem muito no desenho, de misturar o animal com o humano, como humano, no papel do humano , interagindo com o humano…

– É uma convenção dos comics, os animais antropoformes, mas serve muito para mostrar o absurdo que somos todos. Sempre há essa fantasia que tem um nível de normalidade. E o que é raro e foge disso é um estranho. Tem uma frase do Caetano que é muito boa, “de perto todos somos estranhos.” E me parece que é isto, os animais se pode usar pra mostrar como somos raros. Botamos qualquer animal fazendo qualquer coisa que fazem os humanos e vemos como somos estranhos. Tenho uma tira que diz assim: um elefante marinho, com um nariz grande, e um pinguim que o diz ‘opere o nariz que vai aumenta tua auto estima’. Como que o teu nariz baixa a auto estima? É absurdo.

Uma ultima pergunta, tu já falou que conheceu Laerte muito tarde, assim como outros cartunistas brasileiros, hoje em dia tu chega mais rápido que o Quino a trinta anos atrás…

– Graças as facilidades da internet , vivemos sem as fronteiras, hoje é fácil e grátis publicar em outros países.

Mas a pergunta é, hoje em dia tem muita troca entre o cartum brasileiro e o argentino?

– Eu quero que haja mais trocas. Eu quero que na Argentina: Angeli, Laerte, Fábio (Zimbres) e Adão sejam famosos. Porque eu gostaria muito de ter crescido lendo Laerte e Angeli. Eu seria melhor desenhista, melhor historietista, e não tive eles. E sim tive Charles Schultz e Hergé, quer dizer, por que estamos sempre olhando para cima? Temos coisas incríveis ao redor. A mesma coisa acontece com a música, mas agora com a internet… Viemos com o Kevin (Kevin Johansen) que pode fazer shows aqui, Paulinho Mosca vai e faz shows em Buenos Aires, então tudo pode se misturar mais, é muito bom. Vai ser uma geração muito linda a que vem abaixo de nós.

#23-10 Liniers 2 - Fred Stumpf

 

Texto: Chico Guazelli / Ilustração: Fred Stumpf