Beckett

Por Bruno Rodrigues

 

Meu primeiro ano de faculdade coincidiu com um interesse quase fetichista por Beckett. Quisera eu fosse mera formalidade a fim de pagar de ligeiramente intelectual diante o círculo acadêmico. Era mais, infelizmente. Não cabe ao momento, porém. Ao ler e reler as peças de Beckett, compiladas em uma edição com capa que acusava já muito manuseio, eu sentia o agradável prazer estético de entender coisa nenhuma e de, ainda assim, sair do texto vitorioso e cheio de gana. Foi nessa época que entendi que um livro bom deve fazer o leitor se sentir vazio e ridículo como um toureiro que, após o enfrentamento, se senta sozinho num canto escuro do estádio, encharcado de sangue. Claro que muito tentei encontrar sentido. Procurei pistas. Li um ensaio longo de Beckett sobre Proust. Achei que ali havia alguma coisa. Citava Schopenhauer e, salvo engano, Kierkegaard. Eu quis que houvesse algo de existencialista. Transitava bem por esse terreno (por algum motivo que nunca vou descobrir, a biblioteca da escola pública que frequentei na adolescência possuía uma coleção grande sobre existencialismo). O ensaio, porém, havia sido escrito por Beckett aos 25 anos. Esperando Godot, sua primeira peça publicada e representada, aos 42. Muito tempo tinha passado. Quem seria idiota ao ponto de manter as mesmas crenças e opiniões por quase vinte anos? Após meses de leitura, eu estava no mesmo lugar.

Versuch, das Endspiel zu verstehe é um ensaio de Adorno (ainda sem tradução para o português, até onde sei) sobre Fim de Partida, a quarta peça publicada por Beckett. Talvez seja o mais longe que já chegamos – e o mais longe apenas prova que intelectualmente não há muito o que se fazer com essa obra. Adorno passa dezenas de páginas se debatendo entre a existência ou não de um sentido. Os ensaios de Deleuze caçam ainda mais teóricas profundezas. O que se vê após percorrer a tortuosa fortuna crítica em torno do autor é que não se pode prendê-lo em reducionismos simplistas como Teatro do Absurdo ou em interpretações contextuais, dizendo que ele reflete o espírito da Guerra Fria. E que talvez a filosofia seja um corpo morto, o qual ele não deseja profanar. As peças são lances de dados que não abolem o acaso. Não há espaço ou tempo nelas. Não há Seres. Há apenas coisas com formas humanas, com vozes humanas e que conhecem palavras humanas, mas que não são humanas (Lukács, que não gostava de Beckett, que teve essa boa intuição – mas o húngaro, ao contrário de mim, acredita que eles eram “pré-humanos”). Há um indício forte para crer que Beckett é muito mais para ser sentido do que para ser compreendido, prova essa que é a já famosa história da encenação de Esperando Godot nas prisões de Lüttringhausen e San Quentin. Os homens presos pelos mais variados crimes, sem grande educação formal, se emocionaram muito mais e sentiram muito mais do que os críticos e intelectuais que viram a mesma produção em teatros e, após, saíram para jantar e comentar sobre a dureza da falta de sentido da vida. Contam testemunhas que os presos choravam após a não vinda absoluta de Godot e que seus testemunhos nos dias que seguiram revelavam um entedimento sensível profundo sobre dor, esperança. É o sonho de Susan Sontag se realizando, uma verdadeira ideia erótica da arte. A peça, antes de ser um colosso vanguardista, é humana, sensível. Beckett, nesse ponto, está ligado na alta tradição modernista que o pariu, entre Joyce e Proust, e também às suas influências anteriores, como Racine e Shakespeare. Existe, porém, um problema óbvio: se não há Ser, se aquilo não é humano, por que fala tanto ao humano? O grande ponto me parece compreender como o autor arquiteta esteticamente o Nada em prol do sensível.

Abandonei o teatro de Beckett por um tempo. Li e reli os romances que formam a Trilogia (Molloy, Malone Morre e O Inominável, por ordem cronológica), escritos e publicados entre 1951 e 1953, e Como É, seu último romance, de 1961. É importante notar que as peças que formam a primeira fase da tragicomédia beckettiana se estendem entre 1948/49, quando Esperando Godot é escrito, e fecham seu ciclo também em 1961, com a publicação de Dias Felizes. Após 1961, Beckett parte para explorações cada vez mais profundas e complexas, que resultam em trabalhos como Eu Não (1972) e Companhia (1980). Há uma relação, portanto, entre as tragicomédias e os romances, a qual é perceptível nas temáticas. Apesar de compreender a ideia do ciclo e da constituição das ideias que se perpetuam, eu ainda não tinha sequer uma pista da organização formal do trabalho. Acredito que há três perguntas para se fazer quando se deseja analisar um texto: o que é?, por quê? e como?. Já sabia o que era, porque era, mas como era me parecia algo impossível de decifrar.

Foi então que vi um quadro de Francis Bacon. Claro que não vi de verdade, o quadro é de um colecionador particular e não é exposto desde 1971. Devo ter visto uma miniatura do quadro em algum site, devo ter clicado para aumentar, devo ter esperado carregar a imagem, devo ter clicado mais uma vez para aumentar ainda mais. A internet mata o romantismo. Mas vi o quadro de Francis Bacon – era Two Figures, de 1953 (o mesmo ano do agoniante Study after Velazquez’s Portrait of Pope Innocent X). São duas coisas com forma humana (“figuras”, segundo o título da obra), as quais aparentam ser dois homens, deitadas uma sobre a outra em uma cama. Aparentam fazer sexo. Há linhas que demarcam a profundidade da tela e dão a entender que é um quarto. De resto sobra um fundo negro. Me pareceu familiar, de alguma forma. Pensei que deveria ser por haver uma obra anterior aquela, a qual Bacon teria usado como inspiração. Havia mesmo. Era uma das fotos de uma sequência  (Two Men Wrestling) de Muybridge. Entretanto, parecia ter mais. Relacionar a construção estética desse quadro de Bacon com a construção estética de Beckett no ciclo entre 1948/49 e 1961 me custou algumas semanas. Sou lento mesmo. Só entendi quando li o primeiro capítulo de Lógica da Sensação, para sempre meu livro favorito de Deleuze, no qual o filósofo francês escreve sobre Bacon, sendo que poderia muito bem estar escrevendo sobre Beckett. A semelhança me chocou. Resolvi ler, então, um livro de Beckett que sempre acabava indo parar no fim da minha lista de leituras: Three Dialogues, um texto curto, publicado em 1949,  que envolve uma discussão entre o irlandês e Georges Duthuit, um dos nomes mais importantes da História da Arte na França, sobre a arte contemporânea. As declarações que encontrei ali só aprofundaram a noção que comecei a desenvolver¹.

Há muitos bons textos sobre a relação de Beckett com a pintura (principalmente com o movimento Tachisme), então sequer vou me alongar nisso. A questão é que vejo não só uma relação normal de inspiração e reflexão, mas algo maior. Vamos esquecer tudo que sabemos sobre Beckett. Vamos pensar na constituição mínima de suas peças e de seus romances. Há cinco personagens presentes em Esperando Godot e um que não aparece. Há uma estrada, uma vala e uma árvore. Há quatro personagens presentes em Fim de Jogo, sendo que dois deles estão em latas de lixo. A ação ocorre em uma sala com duas janelas pequenas. A cela de Malone. O deserto em Dias Felizes. A lama em Como É. Beckett organiza os elementos de seu texto não da maneira que um escritor “normal” organizaria. Posso pegar qualquer drama ou romance considerados clássicos, Hamlet e Madame Bovary, por exemplo, e neles não vou encontrar tamanha rigidez nos elementos mínimos que os constituem. Isso não é comum na literatura, nem mesmo nas influências conhecidas e diretas de Beckett. É comum, porém, na pintura. Os elementos precisam de determinada rigidez, mesmo nas construções abstratas. Acredito, portanto, que Beckett escreve como se estivesse pintando. Ou seja, ele transgride a linguagem literária e a torna linguagem visual. O incrível nisso, porém, não é essa construção estética apurada. O incrível é ele conseguir unir construção estética apurada, transgressão de linguagem e material sensível muito rico. Muitas vezes a vanguarda artística é transformada em uma arquitetura inútil por perder o humanismo pelo caminho. Beckett consegue ser humano, apesar de erguer um monumento à violação do comum. As coisas, as quais na sua obra ocupam o espaço que seria destinado aos seres humanos, são frutos dessa violação. Elas falam ao humano, porém, por se sustentarem em um certo limiar que é frágil, delicado e incerto. Assim como a vida.

 

¹ “Há diversas maneiras possíveis de tentar dizer em vão aquilo que, em vão, venho tentando dizer. Eu experimentei, como você sabe, tanto em público como a sós, com a dureza, com a fraqueza do coração, com a fraqueza da mente, umas duzentas ou trezentas vezes. A patética antítese posses-pobreza foi talvez a mais tediosa. Mas começamos a nos cansar dela, não é mesmo? A constatação de que a arte sempre foi burguesa, embora possa anestesiar nossa dor frente às realizações do socialmente progressista, é afinal de pouco interesse. A análise da relação entre o artista e sua ocasião, uma relação sempre tida como indispensável, tampouco aparenta ter sido muito produtiva, a razão talvez seja a de que perdeu seu rumo nas investigações sobre a natureza do ocasião. É óbvio que para o artista obcecado com sua vocação expressiva, toda e qualquer coisa está condenada a tornar-se ocasião, inclusive (o que parece ser, em certa medida, o caso de Masson) a busca da ocasião e os experimentos do tipo cada-homem-sua-própria-esposa do espiritualizado Kandinsky. Nenhuma pintura é tão repleta quando a de Mondrian. Mas se a ocasião aparece como um termo instável da relação, o artista, que é o outro termo, dificilmente o é menos, em virtude de seu escudo de modos e poses. As objeções a esta visão dualista do processo criativo não convencem. Ainda que precariamente, duas coisas estão estabelecidas: o alimento, das frutas no prato à matemática elementar e à autocomiseração, e a maneira de despachá-lo. Agora, tudo aquilo que deveria nos ocupar é a ansiedade da relação em si mesma, aguda e crescente, como que deslocada para uma zona de sombra mais e mais intensa por um sentimento de invalidez, de inadequação, de existência as custas de tudo aquilo que ela exclui, tudo que ela obscurece. A história da pintura, lá vamos nós de novo, é a história de suas tentativas de escapar do sentimento de fracasso, por meio de novas relações entre aquilo que representa e o representado, relações mais autenticas, mais amplas, menos excludentes, numa espécie de tropismo em direção a uma luz, sobre cuja natureza as melhores opiniões ainda continuam a variar, e com uma espécie de terror pitagórico, como se a irracionalidade de pi fosse uma ofensa contra a deidade, para não falar de sua criatura. Meu argumento, já que estou na chuva, é que van Velde é o primeiro a desistir deste automatismo estetizado, o primeiro a admitir que ser artista é falhar, como ninguém mais ousou falhar, que o fracasso é o seu mundo e que recuar diante dele é deserção, artesanato e habilidade, prendas domésticas, vida. Não, não permita que eu expire. Sei que tudo que é preciso agora, para conduzir este assunto horrível a uma conclusão aceitável, é fazer desta submissão, desta admissão, desta fidelidade ao fracasso, uma nova ocasião, um novo termo da relação, de cujo ato, incapaz de agir, obrigado a agir, ele gera, um ato expressivo, mesmo que apenas de si mesmo, de sua impossibilidade e de sua obrigatoriedade. Sei que minha incapacidade de fazê-lo eu mesmo, coloca-me, e talvez a um inocente, no que me parece que ainda se chama de situação pouco invejável, conhecida dos psiquiatras. Pois o que é este plano colorido, que não estava aqui antes. Eu não sei o que ele é, não tendo visto nada parecido antes. Parece que tem alguma coisa a ver com arte, em todo caso, se as minhas lembranças da arte estão corretas.” (Tradução de Fábio de Souza Andrade, presente no livro Samuel Beckett: O Silêncio Possível).