Partolândia: o direito ao parto humanizado

Por Natália Otto – Publicado na edição 21 do Jornal Tabaré

Eram nove da noite quando Aiyra começou a encontrar o caminho para chegar ao mundo. Sua mãe, Naieth, passou a madrugada sentada em frente a uma fogueira no quintal de uma casa na Zona Sul de Porto Alegre, sentindo a filha se mover. Às dez da manhã do dia seguinte, o trabalho de parto das duas começou. A partir daí, foram horas de caminhadas no pátio, movimentos de yoga e banhos de banheira. Às sete horas da noite do dia 30 de agosto de 2012, Naieth deu a luz à filha apoiada nos braços do companheiro, Eduardo, e acompanhada por um médico obstetra, uma enfermeira e uma doula – mulher que acompanha e dá apoio emocional às gestantes.

Desde que se descobriram grávidos, Naieth Baggio e Eduardo Raguse sabiam que desejavam o parto o mais natural possível para a filha. Pesquisando sobre as alternativas para o nascimento, optaram pelo parto humanizado – caracterizado pelo mínimo de intervenções médicas possíveis. Ativistas da humanização do nascimento defendem que o parto é, além de um evento médico, um evento social, afetivo e espiritual. Os nascimentos desse tipo podem ocorrer em casa, em hospitais ou em casas de parto. Independentemente do local, o foco é na saúde emocional e física da gestante e do bebê.

Ilustra Juliana Veloso

“O parto te tira do teu eu. Ele te liga com todos os teus chakras, com teu espírito, com a terra. É incrível a energia que rola nesse momento”, diz Naieth. A estudante de Biologia de 26 anos conta que passou por momentos de um apagamento mental, dos quais não tem lembrança. “Havia outras pessoas na casa, mas eu só enxergava o Eduardo e a nossa filha. O tempo passa voando e em câmera lenta.”

A sensação de estar em outra dimensão que Naieth sentiu tem explicação científica:  quando uma mulher entra em trabalho de parto, há um apagamento da parte frontal do cérebro, o neocortical, responsável pelo raciocínio e a lógica. Assim, há uma ativação do lado instintivo do cérebro, que faz a regulação de hormônios necessários para o processo do parto. A gestante entra em uma espécie de sono, que ativistas da humanização chamam de “Partolândia”. “A mãe entra nesse mundo afetivo, emocional. Ela vai para o mundo do feto, onde não há palavras. É um mundo mais íntimo”, explica a educadora perinatal Eliane Scheele.

Dentre as prioridades do parto humanizado estão o respeito ao desejo da mãe de ter pessoas queridas ao seu lado e a participação ativa do pai no nascimento, quando o casal desejar. O engenheiro ambiental Eduardo, de 26 anos, brinca que também sofreu as “dores do parto” durante o nascimento de Aiyra. “Eu entrei em outra dimensão de energia. Existe a Partolândia e eu brinco que pisei lá também”, conta ele. “Tem uma energia muito forte e, quando nasce o bebê, é como um vulcão em erupção. Uma coisa que me marcou foi quando minha filha nasceu e eu olhei o rosto dela pela primeira vez. Foi como se alguém tivesse me dado com um pedaço de pau na cara. Durante uns trinta minutos, eu só conseguia olhar para ela”, lembra. “Tu morres e nasces de novo.”

Mas nem todos os casais que dão a luz pisam na Partolândia ou voltam de lá satisfeitos com a experiência. Não muito longe da casa onde Aiyra nasceu, nos melhores e nos piores hospitais da Capital, mães dão à luz rodeadas por desconhecidos, com o julgamento e a razão turvas por sedativos. Não raro essas mulheres são agredidas verbalmente ou submetidas a procedimentos cirúrgicos desnecessários. A pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, revelou que um quarto das mulheres no Brasil já sofreram alguma forma de violência obstetrícia – aquela praticada durante o trabalho de parto ou o pré-natal.

Depois da violência, uma vocação

A doula e educadora perinatal Eliane Scheele já presenciou partos que engordam essas estatísticas. Ela conta que acompanhou uma gestante em um hospital público do estado. A mulher chegou ao hospital com o trabalho de parto progredindo “maravilhosamente bem”, mas, mesmo assim, foi submetida a uma episiotomia – um corte cirúrgico no períneo, região entre a vagina e o ânus, para apressar a saída do bebê. “Foi totalmente desnecessário. Ela teria ganhado o filho meia hora depois”, lamenta Eliane. “Mas como estava toda aquipe ali, esperando, e tem muito serviço dentro de um centro obstétrico, se justifica a episiotomia. Nunca é pensando no bem-estar da mãe e do bebê.” A gestante em questão não foi avisada nem questionada sobre o procedimento. Anestesiada, ela só descobriu o corte depois do parto.

Segundo Eliane, a episiotomia é a única cirurgia no Brasil realizada sem consentimento do paciente. Apesar das diretrizes da Organização Mundial da Saúde apontarem que o corte só é necessário entre 5% a 10% dos partos normais, o procedimento chega a quase 95% dos nascimentos brasileiros. A doula explica que muitas mulheres sentem as sequelas do corte para o resto da vida. “Imagina o desconforto, para uma mulher, sentir dor durante a relação sexual e sempre se lembrar de uma mutilação desnecessária que ela sofreu?”, questiona.

Diferente de Naeith e Eduardo, que “nunca foram muito bobos” para as consultas médicas e já tinham conhecimento dos casos de violência obstétrica quando decidiram pelo parto domiciliar, Eliane passou por dois partos hospitalares antes de descobrir outras alternativas para o nascimento. “Como todas as mulheres, eu não imaginava que havia sofrido violência obstetrícia, porque ela está instituída”, lembra.

Foi uma casualidade que a fez encontrar o mundo do parto humanizado: seu terceiro filho, Ismael, estava sentado dentro de sua barriga – o que, segundo o obstetra de Eliane, era uma indicação de cesariana. Como sempre foi adepta do parto normal, ela buscou alternativas e descobriu uma equipe de parto humanizado em Porto Alegre que a ensinou técnicas para virar o bebê. Foi preciso apenas quatro dias realizando posições de yoga e utilizando a técnica oriental da moxabustão – um bastão de ervas quente colocado em pontos de acupuntura – para fazer Ismael ficar na posição mais propícia para um parto natural. Eliane desmarcou a cesárea com seu obstetra e teve o terceiro bebê em casa, em uma banheira, com o auxílio da equipe composta por um obstetra, uma enfermeira e uma doula. Ela relata o processo de forma inusitada em uma sociedade tão acostumada a imagens de mulheres sofrendo ao dar a luz: para Eliane, foi prazeroso parir.

“Com as medidas de alívio e conforto promovidas em um ambiente seguro, as contrações doem menos e, entre elas, a mulher pode sentir várias sensações de prazer”, explica ela. “Se entregar para essa dor faz parte de um processo de amadurecimento máximo que uma mulher pode ter da sua sexualidade. Quantos sofrimentos, quantas perdas tivemos em nossa vida, para nos constituirmos como adultos?”, pondera.

Depois do nascimento de Ismael, em 2007, a vida de Eliane mudou. “Senti um novo nascimento como mulher. Minha relação com o prazer mudou, a relação com meus filhos também. Adquiri um prazer maior em ser mulher, e um amadurecimento de enfrentar o mundo com os olhos de uma mulher”, conta. A transformação foi tão grande que a fez escolher uma nova carreira: hoje, aos 36 anos, ela estuda enfermagem para se tornar parteira. “Tive muita vontade de mostrar para as mulheres que elas podem parir de uma maneira muito mais respeitosa, digna e prazerosa.”

Objetificação e hierarquias na sala de parto

O obstetra porto-alegrense Ricardo Jones é outro profissional que conviveu de perto com a violência obstetrícia. Hoje, ele é o único médico que acompanha partos domiciliares no Rio Grande do Sul. Sua jornada rumo à humanização do nascimento partiu do testemunho – e da prática – de violências institucionais na obstetrícia. Pai aos 21 anos, Ricardo pôde assistir ao parto de seus dois filhos pois era estudante de medicina no hospital onde sua esposa deu a luz. “Nessas duas ocasiões, pude presenciar a série de violências que ocorrem em um parto hospitalar”, conta.

A epifania que o fez mudar de vida, no entanto, veio de sua própria prática. No primeiro ano de residência, Ricardo atendeu às pressas uma mulher que chegou ao hospital com o trabalho de parto em estágio avançado. Ele chegou a xingar a paciente por ter vindo muito tarde ao hospital, precisou atender o bebê sem luvas e tentou, sem sucesso, realizar uma episiotomia na gestante. “Depois, eu percebi que absolutamente tudo que eu fiz na atenção daquela paciente atrapalhou o que poderia ter sido um evento perfeito”, lembra. “Aquilo era um automatismo produzido pelo ensino médico, que fazia com que eu tratasse as pacientes como objetos”, conta o médico. Para ele, ali, se estabeleceu uma ruptura. A partir daí, Ricardo se dedicou a atender pacientes que desejassem um parto humanizado.

Dentre as violências observadas por Ricardo em hospitais, estão o impedimento de acompanhantes permanecerem ao lado da gestante durante o trabalho de parto e o nascimento do bebê; a obrigação da mulher de parir deitada, uma posição que, segundo o médico, dificulta a descida do bebê; a realização rotineira de episiotomias; a utilização exagerada de hormônios sintéticos para apressar o trabalho de parto; intervenções desnecessárias na primeira hora de vida do recém-nascido; e o aumento “calamitoso, que beira a barbárie”, das cesáreas sem indicação médica no Brasil.

Ilustração Juliana Veloso

Diretrizes da Organização Mundial da Saúde indicam que o número de cesarianas em um país não deve ultrapassar 15% do total de nascimentos. No Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, em 2011, 38% dos partos da rede pública de saúde foram cesáreas. Na rede privada, 83% das gestantes realizaram partos cirúrgicos. Para Ricardo, o motivo é a economia de tempo e comodidade dos profissionais. “Se você perguntar a um médico o que ele prefere, ficar 14 horas ao lado de uma paciente durante um trabalho de parto em uma madrugada de sábado para domingo ou marcar uma cesárea para as 8h da segunda-feira, a resposta é óbvia”, explica.

Naieth e Eduardo vivenciaram essa realidade quando contavam aos médicos que sonhavam com um parto natural. O casal ouviu frases como “vamos tentar o parto normal até onde for possível” e “parto de cócoras é coisa de índio, mulheres não têm resistência para isso” de obstetras até se tornarem pacientes de Ricardo. “Eu percebia que havia uma resistência dos médicos. Houve um que disse que tentaria o parto normal, mas notei que ele fazia exames procurando algo para justificar uma cesárea”, conta Naieth.

Para Ricardo, as violências partem da objetificação da mulher e da patologização da gravidez. “A paciente é colocada em uma esteira de montagem, onde o tempo é o fator preponderante”, lamenta. Segundo o obstetra, boa parte dos médicos veem a retirada do bebê do ventre da mãe como uma retirada de pedra na vesícula. “Claro, não se pode negligenciar os aspectos médicos do parto. Há uma série de problemas como hipertensão e diabetes que podem transformar uma grávida em uma pessoa doente”, ressalta.

“Mas o parto é muito mais do que um evento médico. Nele estão envolvidos a psicologia, a enfermagem, a antropologia e a sociologia”, enumera. Para ele, o nascimento reproduz uma série de rituais carregados de simbolismo: “Quando você assiste a um parto em um hospital, você pode enxergar o valor da mulher, do homem, do dinheiro, das etnias. Você pode ver o valor das profissões e a hierarquia que existe entre elas: primeiro o médico, depois os enfermeiros, os técnicos e por último, a paciente.”

Ricardo ressalta que a abordagem interdisciplinar do nascimento é uma necessidade, sob pena da redução dos humanos a seres meramente biológicos. “Tu podes fazer uma análise biológica quando tu analisas moscas. Mas indivíduos que produzem cultura são mais do que isso”, reflete ele. “Não somos só carne em cima de uma mesa.”

Parir com liberdade é um ato feminista

O voto feminino, as leis trabalhistas, a lei do divórcio, a lei Maria da Penha, o direito ao aborto e o direito ao parto humanizado: para Ricardo, a luta pela humanização do nascimento é mais uma das causas feministas. “Se olharmos de forma panorâmica, essas conquistas nos levam a um denominador comum, que é a liberdade da mulher e o rompimento com o modelo patriarcal”, explica. “O parto é uma questão de direitos humanos, reprodutivos e sexuais. Como e onde uma mulher terá seu filho não é uma escolha médica minha. É um direito de escolha dela.”

“O melhor lugar para uma mulher ter seu bebê é onde ela se sentir mais segura. Algumas se sentem melhor em hospitais, com toda a tecnologia possível. Outras, em sua casa, dentro de seu domínio. E outras gostariam de ter filhos em casas de parto, com uma equipe que realiza partos humanizados”, aponta Ricardo. “Deveríamos poder atender a todos esses desejos, mas não é o que ocorre.”

Naieth e Eduardo lamentam a dificuldade que tiveram de lutar contra essa realidade. “O parto é o ponto de partida onde começam esses medos que a sociedade nos impõe”, reflete Eduardo. “O médico tem aquele poder e tu te colocas na mão dele, ele te diz palavras que tu não entendes e isso cria uma situação de medo de algo que deveria ser natural. Eu e a Nai ficamos aterrorizados de ver como as pessoas estão abrindo mão desse momento”, conta. “A gente vive em uma sociedade com tão poucos ritos de passagem na nossa vida. Para nós, nosso parto foi um rito”, diz o engenheiro.

Para o casal, a busca pelo parto humanizado foi uma “guerrilha”. “A gente sentiu que para oferecer um parto digno ao teu bebê tu tens que lutar contra todo um sistema”, conta Eduardo. Para resumir a experiência do casal, que foi da busca por um nascimento digno para uma “guerrilha eterna”, Eduardo cita uma frase do obstetra francês Michel Odin: “se queremos mudar o mundo, temos que começar pela forma como a gente nasce e recebe nossos filhos.”

 

Ilustrações: Juliana Veloso