Di Melo: encontros e desencontros com o cenário musical

Por Luísa Santos e Rodrigo Isoppo
Ilustração: Johannes Kolberg

Seria sensacionalismo tratá-lo enquanto lenda? Talvez. Fato é que Roberto de Melo Santos, mais conhecido como Di Melo, carrega uma iconicidade que vai além de sua qualidade enquanto músico: uma narrativa particular surpreendente. Um alguém que quis mostrar seu talento ao mundo, mas que teve de ter o seu desejo desviado. Contudo, por ironia do destino, esse mesmo mundo acabou por lhe dar um privilégio ainda maior: o título de Imorrível. Um sujeito que foi redescoberto nos confins do ostracismo. Di Melo é um dos tantos que teve a arte renegada na porta das grandes gravadoras, ao mesmo tempo é um dos poucos que ressurgiram das cinzas muitos anos depois . Ele é a marca de que o sucesso não depende apenas do talento, mas também da estratégia frente à concorrência do mercado, que ele próprio chama de “desleal”.

Di Melo

O pernambucano Di Melo chegou em São Paulo no fim dos anos 60 trazendo uma materialização do soul, algo até então pouco explorado no solo tupiniquim. Em 1975, lançou seu consagrado disco pela EMI-Odeon. Apesar de compor  ao lado de Jorge Ben, Hermeto Pascoal e Jair Rodrigues, Di Melo não teve o mesmo reconhecimento. Nos solavancos do tempo e espaço, ele se envolveu com a noite paulistana, trocou shows por migalhas e se apagou aos poucos da possibilidade de crescer profissionalmente na carreira. Na década de 90, já de volta a Recife e desacreditado do sonho de artista, recebeu a notícia de que havia sido descoberto na Europa por DJ’s ingleses que o colocaram em uma coletânea de música brasileira. O curioso é que, em meio a esses 30 anos, contava a lenda que Di Melo havia morrido em um acidente de moto.

Autointitulando-se como “O Imorrível”, Di Melo está de volta na cena musical brasileira. Muitos diriam que por fruto do acaso, ele diz “tudo tem sua razão de ser, tudo é tempado e tudo é prazado”. Hoje ele protagoniza shows para cerca de 85 mil pessoas com seu groove e swing inigualáveis, e foi numa dessas, em fevereiro de 2014, no festival Psicodália, que tivemos a possibilidade de tê-lo frente a frente para nos contar um pouco de sua trajetória: desde a gênese até a ressurreição e o retorno ao “mundo dos vivos”. Tomado pelo êxtase do resultado tardio de seu sucesso, ele mal olhou pra nós – efêmeros repórteres – e confabulou sua autobiografia mergulhado em superação e satisfação, como se recebesse, com atraso, o quinhão pela árdua experiência.

 

Tua carreira musical teve um início conturbado. O que te fez cair no ostracismo?

Eu fui pela primeira vez para São Paulo com Vanderlei, organista de Roberto Carlos. Fiquei durante um tempo, mas eu estava meio que me sentindo nulo-crudo e voltei para Recife. Fiquei um tempo amadurecendo ideias, criando e recriando e recriando, até que encontrei o Jorge Ben. Ele me deu um cartão e disse: “Velho, procure este cara: Roberto Colossi”. Até então, ele era o maior empresário (ele e Marcos Lázaro) do Brasil. Tava todo mundo com ele – de Chico Buarque e Jô Soares a Paulinho da Viola. Procurei ele, e quando ele largou todo mundo pra ficar com o Jô Soares, eu passei a trabalhar na noite. A noite adere a ideia do manha, maçanha, maranha, mamunha e tramoia. A noite te dá isso, esse campo de vivão. E depois você tem que sair fora porque, se você persistir, você vai se queimar, vai dar com os burros n’água e virar carne de vaca. Então eu acho que tudo tem que ser dosado e não esclerosado.

Eu tinha um disco tocando. Saía de uma rádio tocando noutra. Eu tinha música no disco do Wando, aquela “moça, me espera amanhã…” que estourou e todo mundo sabe. Tinha a música “Abra o sorriso novamente” no disco do Jair [Rodrigues]. E fui receber um direito autoral, trimestral, de 11 cruzeiros. Aí eu disse “porra… faz tempo que foi descoberto que a real burrice não tem transplante. O que eu tô fazendo aqui!?”

Passado isso, o que tu tem a dizer sobre o papel da indústria fonográfica no Brasil?

Eu costumo dizer que o Brasil possui uma gama frequente de pessoas fazendo coisas belíssimas e que muitas vezes não têm recebido espaço ou reconhecimento. Mas de alguma forma isso se sobressai. Tem coisas muito boas, coisas razoáveis, coisas passáveis e coisas descartáveis. Então o que ocorre: você estourar, você acontecer – isso pode ser. Agora, o difícil é permanecer. A permanência é um tanto quanto difícil porque a concorrência é crudelíssima e muitas vezes desleal.

Minha incredulidade se encontra no mercado da música e pô… você fazer alguma coisa que valha a pena, que você gosta e que você consiga sobreviver dela, da tua arte, até hoje, é meio ingrato no Brasil. Você vê muita gente que não tem tais valores. Mas isso tambem se vê na pintura, tambem nas várias artes, atores… quer dizer, você tem que tá com tudo em cima no momento exato.

Independentemente do balanço, do swing, da malemolência, da jocosidade, da malandragem, há tambem o trabalho gritante, sério e de cunho politizado. Na época, eu fazia questão de executar esse tipo de trabalho que também estava em voga. Não que eu atacasse de maria-vai-com-as-outras, não é bem isso. É queeu sou muito brincalhão, mas também falo sério.

Pode ser que eu esteja no momento exato agora. Eu gostaria de ter tido essa experiência no passado.  É que quando você é jovem, você acha que o mundo não vai acabar nunca. Você se dá o direito de quebrar regras.

Em meio ao teu desaparecimento da cena musical paulistana, acreditaram que tu havia morrido. Como foi receber a notícia?

Eu sofri um desastre de moto e, como eu saí do ar, todo mundo passou a dizer: “Pô, o cara morreu”. Aí começou aquele papo de que morreu. De repente, um amigo meu liga assim, às 8 horas da manhã: “Di Melo, ta de pé?”. “Sempre”. “Não me deu mais notícias. Foi feita uma pesquisa a nível mundial e chegou-se a conclusão de que você está entre as 10 melhores vozes do planeta, mas que, infelizmente, você fez um único disco pela EMI Odeon e morreu de desastre de moto”. “Porra, morri e esqueceram de me avisar!”, respondi.

A história começou com os DJ’s do mundo todo aderindo ao som e tocando. E a coisa foi se avolumando e pegando um pedal incredulidável, haja vista que nada acontece por acaso. Tudo tem sua razão de ser. Como eu tava falando, tudo é tempado e tudo é prazado. Então, eu tô colhendo frutos que plantei no passado. Di Melo, o imorrível. Di Melo, se deixar, pula de avião sem paraquedas e cai intacto. Tem sete vidas feito gato.

A partir desta surpresa, como tu te reorganizou no cenário musical?

Eu havia perdido a vontade de fazer as coisas. Mas surgiu uma nova razão que me move. Tô com uma filha de sete anos que me impulsionou a isso. Faço isso em grande parte por ela. Ela é um gênio, linda ela. Ela canta, abre e fecha o show. Ela é do caralho, o povo pira com ela. Ela diz “meu pai é um cremopempolho: junção de cri-cri, morcego, pentelho e piolho”. Ela é foda.

Tenho 400 musicas inéditas, das quais doze com Geraldo Vandré, uma com Baden Powel, uma com Wando e duas com Jair Rodrigues. Recentemente, também com o Emicida e outra com Rashid. Pretendo, na sequência, gravar essas músicas que tenho com outras pessoas. Tenho outro disco: o “32 de Fevereiro”. Todo mundo acha que o Di Melo só tem o disco da EMI-Odeon. Mas não. Existem 10 CDs gravados. Assim, pegando por baixo, mais de 100 músicas gravadas, 400 inéditas, outras esquecidas. Mas isso é legal, esse é o verdadeiro pagode de tudo, a satisfação plena.

Como tá se dando esse contato com um público que não foi contemporâneo ao processo de criação das tuas músicas?

Onde eu tenho ido, graças ao Todo-Poderoso, o acesso, a festividade e os depoimentos das pessoas têm sidoincríveis. Eu me sinto honrado, felicitado e às vezes nem acredito no que tá acontecendo. Parece um sonho que eu não quero que termine tão cedo. Eu me entrego a isso de corpo, alma e divindade. Por ter muita música guardada, acho que agora tem muita gente vindo e gravando, muita gente groovando em cima. Onde vai, o som é uma festa de cores, luzes e sabores.

Tô viajando. Se eu marcar comigo eu furo. O público adere, compra os discos, compra as camisetas. Tá virando uma corrente positiva, um respeito ao trabalho. O que é inegável é que tem algum valor. Se não tivesse ou houvesse tido, não tava rolando essa onda. Entendeu?

Meu espírito continua jovem. Disso, nada mudou. Cresci, a voz tá melhor ainda, tenho voz de criança e cabeça juvenil. Inclusive, transo feito jovem, o tesão prossegue, tá tudo em cima. Se marcar comigo, eu furo. Me apaixono todo dia, gostaria de ser mil homens pra namorar mil mulheres ao mesmo tempo. É um barato! Pintou mulher bonita, eu me apego fácil. Pintou marido nervoso, me desapego. Mas gosto dessa safadeza toda.