O fetiche e o tabu

Por Leonardo Bomfim

 

Sem sombra nem trens de dúvida: em busca de algum diálogo ou em homenagens sem muita intimidade com a bola, revirar o baú do período silencioso tornou-se um dos grandes fetiches do cinema atual. Entre obras-primas e pés de página, desde que a invenção dos Lumière completou cem anos encontramos cada vez mais obras inspiradas naquele mundo. Por isso não é estranho que dois filmes importantes lançados no último mês em Porto Alegre peçam alguma coisa emprestada ao cinema mudo: o português Tabu, de Miguel Gomes, como indica o título, tem F.W. Murnau como musa inspiradora e o espanhol Branca de Neve, de Pablo Berger, revisita o clássico dos irmãos Grimm como se estivesse na década de 1920.

 

Claro que são intenções diferentes. Os dois cineastas não procuram (e muito menos encontram) a mesma coisa no baú, mas a questão que seus filmes levantam não deixa de ser a mesma: o que quer o cinema ao olhar, hoje, para o período silencioso?

 

É comum encontrar a defesa das releituras – e não importa se o resultado é bom ou não – com o argumento de que tais filmes são um manifesto contra a pirotecnia visual que reina no cinema contemporâneo, especialmente nos blockbusters. A função das obras seria a de fazer o espectador reaprender a olhar. É um discurso atraente, mas esquisito se lembrarmos que o cinema tem lá uma boa dose de culpa na (interessante) perversão que o século vinte impôs impiedosamente à imagem (e principalmente a nossa relação com as imagens). Existe algo de prometeico no modo como o cinema rouba as imagens das mãos dos deuses e as eterniza num plano terreno, um território acessível para todos os participantes do jogo.

 

Nesse sentido, tendo em vista que a sétima arte foi uma das grandes responsáveis por vulgarizá-las, não faz muito sentido cultivar a ideia de que o cinema deve salvar as imagens das trevas. É com ele, por exemplo, que a imagem realmente deixa de ser algo singular, inclusive num sentido narrativo, para se tornar uma peça de uma engrenagem. Nos anos 1920, é comum encontrar quem defenda que a imagem precisa de outra pra fazer sentido – os soviéticos (Eisenstein, Kuleshov e herdeiros) são os que desenvolvem uma fundamentação teórica a respeito, mas essa premissa é aplicada naturalmente em vários recantos: uma imagem leva a outra que leva a outra e assim por diante. O cinema desperta uma funcionalidade que a imagem nunca mais deixará de ter, mesmo em casos de rupturas que busquem um retorno ao pictórico pré-cinematográfico (hoje nos relacionamos até com imagens anteriores ao cinema com exigências estéticas e narrativas do nosso tempo). Por isso é esquisito que as carpideiras usem logo o cinema mudo, que também foi extremamente pirotécnico, como bandeira nostálgica.

 

O maior problema desse retorno romântico, entretanto, é que a década de 1920 acaba muitas vezes blindada de um olhar crítico. É como se fizessem vista grossa para as bobagens que um bebê faz só porque ele não tem a consciência de seus atos. E não dá pra tratar aquela década como um período inocente do cinema, de invenções e descobertas ingênuas. Eisenstein é inocente? Abel Gance, Dreyer, Lubitsch? Ou, pra ficar na inspiração de Miguel Gomes, Murnau? Estamos falando de grandes cineastas com projetos, conceitos e ideias muito claras sobre o que o cinema deveria ser. Basta ver alguns minutos de filmes como Outubro, A Roda, A Paixão de Joana d’Arc, A Última Gargalhada e O Leque de Lady Windermere para perceber que não há nenhuma criança irresponsável ali. Até porque os enfant terrible do cinema vieram bem antes, são Lumière, Edison, Méliès, R.W. Paul, e já não eram nada inocentes.

 

Em muitos casos de filmes que retomam esse universo, a impressão é a de que a complexidade do período silencioso é completamente ignorada. Um exemplo perfeito é O Artista, de Michel Hazanavicius, “filme mudo” que causou rebuliço ao tomar conta do Oscar há dois anos, inclusive colocando o drama da transição para o sonoro como ponto principal de sua trama, mas que revisita apenas uma idealização – completamente genérica – de cinema silencioso. Tirando uma piada interna aqui e acolá, não há nada na obra que realmente estabeleça um diálogo com algo realizado (ou pelo menos com alguma ideia de cinema) do período. É claro que o filme traz à luz a adaptação às novas tecnologias, tema extremamente contemporâneo, mas não há profundidade suficiente para que saia do terreno da “homenagem ao silencioso” – e sabemos que na arte a homenagem muitas vezes é habeas corpus de crimes hediondos.

 

Não me parece que a intenção de Pablo Berger em Branca de Neve é render alguma homenagem. O modelo de cinema mudo aplicado a sua narrativa serve muito mais como uma possibilidade de acentuar a potência visual, devolvendo as sombras ao clássico conto de fadas, a partir de uma interessante aproximação ao universo das touradas de Sevilha, do que algum tipo de celebração. É um filme que aposta na idéia de que a imagem é poderosa, algo que o aproxima de algum modo às teorias mais eufóricas dos anos 1920 de que a imagem deveria tomar conta da narrativa. Mas o problema acaba sendo o mesmo de O Artista: não basta eliminar os diálogos e inserir um acompanhamento musical para fazer cinema silencioso, até porque, como bem observou Jacques Rivette nos anos 1950, aqueles filmes já falavam. Só um surdo não ouve as palavras de Griffith, Lubitsch e Murnau. O Artista e Branca de Neve se encontram por caminhos distintos, já que o principal equívoco dos dois é tratar a década de 1920 como um bloco de concreto único sem muita forma ou como uma carcaça na qual que você pode aplicar suas imagens, como se existisse um gênero com características sólidas chamado “filme mudo”. E a conseqüência é cruel: se a década de 1920 é qualquer coisa, ela acaba não sendo coisa alguma.

 

Enquanto Hazanavicius e Berger exumam o corpo de um manequim, Miguel Gomes inspira-se em um cineasta específico do período silencioso com um objetivo bem claro: a defesa do artifício. A busca do português, ao pedir a benção do Tabu de 1931, é a de tentar entender como o mestre alemão conseguiu tomar as rédeas das imagens num território praticamente inexplorado num sentido visual (a ilha de Bora Bora) em que onze em cada dez cineastas ficariam tentados a consagrar uma obra realista (ou ao menos com uma aparência realista). O Tabu de Murnau ainda parece um enigma: como se pode esculpir em mármore planos aparentemente corriqueiros de nativos, de “selvagens”? A impressão é a de que Gomes recorre ao cineasta para conseguir ter um certo tipo de poder sobre as imagens que o cinema contemporâneo, com raras exceções, dispensou há algum tempo. Contra a encenação, contra a decupagem clássica, contra tudo que possa ser percebido como manipulação, especialmente num solo mais autoral, a ideia de realismo (ou melhor, a ideia de que é preciso chegar a um resultado realista, mesmo que o caminho até ele seja cheio de trucagens) venceu de vez, e de fato parece modular a representação contemporânea. E mesmo se pensarmos no blockbuster, o real também assombra: o que são os super-heróis do nosso tempo? Christopher Nolan precisa de um filme inteiro de quase três horas para delinear uma verossimilhança psicológica e justificar cada ação de um homem que se veste de morcego e combate o crime numa cidade fictícia! O Homem de Aço segue o mesmo caminho e então percebemos que quando até fantasias delirantes precisam se travestir de verdade, o realismo já se tornou paranoia.

 

Num cenário em que Gotham City precisa realmente existir, é incrível ver Miguel Gomes defendendo o fato de que “a África que se vê no filme é uma África de mentira, uma caricatura do continente feita pelos colonizadores, uma variação da imagem que o cinema americano criou para a África nos anos 1940, 1950”, em entrevista à pagina de cinema do UOL. Pois não apenas sua África é de mentira, mas também sua década de 1960, assim como seu cinema mudo. Dessa forma, mesmo tendo um cineasta de outra era como referência, Tabu é um filme que olha para frente ao valorizar a fabulação despertada pelas mil e uma narrativas que o nosso tempo estimula a todo momento, colocando em xeque a obsessão com as variantes da vontade de realidade que rege o cinema contemporâneo. E o elogio ao artificial, no fundo, deixa claro que para além da reverencia a Murnau, o grande tabu do cinema que Miguel Gomes encontra ao propor uma volta no tempo de mentirinha é a ficção.