O maravilhoso mundo de Georgievna Grunnupp

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Por Luna Mendes e Natascha Castro

Fotos por Yamini Benites

Conhecida por sua gargalhada estridente e sua presença marcante, Elke Maravilha é o reflexo de um caleidoscópio de estilos e referências montado pelas diferentes culturas com as quais conviveu. Talvez sua multietnicidade seja um dos seus atributos mais evidentes, algo que se reflete visualmente em sua excêntrica maneira de vestir e agir.

Nascida na Rússia, Leningrado, em 22 de fevereiro de 1945, com cerca de oito anos Elke veio para o Brasil, interior de Minas Gerias, e deixou de ser Georgievna Grunnupp. No fatídico primeiro de abril de 1964 chegou ao Rio Grande do Sul onde estudou Letras com ênfase em Grego e Latim na Universidade Federal. Durante a ditadura militar, voltou para a Alemanha, vagou pela Europa e até plantou fumo na Grécia. Sua itinerância lhe rendeu a habilidade de falar oito idiomas, além da fluência em duas línguas mortas.

O gosto pelo diferente e a coragem de enfrentar valores conservadores da sociedade fizeram de Elke uma eterna personagem, comumente relacionada a escândalos, algo que lhe confere um ar de irrealidade mesmo agora nos seus 68 anos.

Elke, uma das curiosidades maiores sobre a tua vida é essa itinerância. Tu já moraste em muitos lugares e falas oito idiomas. Conta mais sobre isso.*

Eu sou uma vira-lata, né. Minha mãe era alemã, meu pai era russo, minha avó mongol, meu avô era mestiço de viking com azerbaijano. Na Rússia, a pessoa que fala menos línguas, fala quatro. Isso é normal, meu pai falava quatorze. É louco, porque nossos vizinhos todos falam espanhol e nós não estudamos espanhol. Uma falta de educação, né? Na minha geração estudávamos, porque eramos atrelados à França culturalmente, então a gente tinha uma coisa mais ampla. Hoje é americano, né? Depois que a gente se atrelou culturalmente aos Estados Unidos, a gente caiu muito de qualidade. Na minha época a gente fazia português, francês, espanhol e inglês no ginásio. Depois, no clássico, estudávamos latim. Mas depois que a gente se atrelou aos Estados Unidos, eles acharam por bem que, quanto mais idiotas nós ficássemos, mais bois a gente ficava, né? Mais gado indo pro matadouro. É uma pena, chegarmos ao ponto em que estamos.

Na época em que tu iniciaste, a carreira artística era cheia de preconceitos contra as mulheres. Como era ser uma mulher artista e independente?

Olha, amor, eu nunca fui mulher, sempre fui uma pessoa. Nunca permiti ser chamada de mulher. Falei: não, não sou mulher, sou pessoa. Porque desde pequena eu percebi que o homem é melhor do que nós. Então eu resolvi não ser gênero. Quando pequena, meu pai me levava numa casa onde havia onze mulheres, eu olhava aquele movimento e depois saía com meus pais e os amigos dele pra caçar. Caçar era a última coisa que faziam, enchiam a cara, filosofavam, falavam merda, tinham afeto. E quando eu estava com as mulheres era tudo um maldizer. Até que um dia eu cheguei pro meu pai e falei: “Pai, eu sou mulher, né?”, ele falou “é”. “E você é homem, né?”, e ele disse “é”. “Aquelas que estão na casa conversando são mulheres? E vocês que estão na rua caçando são homens?”. Perguntei “pai, eu tenho que ser mulher? Eu tenho que ser como mulher?”. E ele falou “por quê, minha filha, você não gostou?”, e eu falei “não”. Então ele disse “não, minha filha, seja o que você quiser”. Aí eu resolvi não ser mais gênero.

De que maneira?

Simplesmente não sendo mulher. O que mulher faz? Fiscal de pica: nunca fui. Mantenedora da vida, mesmo que a vida seja um saco: não. Materialista, que matéria vem de mãe: não. Tudo que a mulher faz, eu não gosto. Porque eu não quis, eu quis ser gente, essa é minha proposta, e acho que eu estou conseguindo.

Tu acha que o mundo é muito careta?

O mundo não tá careta, o mundo tá muito ignorante. E a ignorância é mãe e irmã do preconceito. Quando eu tinha uns oito, nove anos, morava na roça em Minas Gerais, e meu pai sempre falava: presta atenção na natureza, ela ensina tudo. Eu falava: mas você ensina. E ele dizia: eu faço parte da mãe natureza, mas eu erro, a mãe natureza não erra. Um dia ele falou, vem cá ver uma manifestação da mãe natureza que é importante que você conheça. Em Minas temos gado leiteiro, a topografia não permite gado de corte. E tinha uma vaca com um bezerro grande e ela queria dar para o touro. Mas eles não queriam que a vaca transasse, porque ela não daria mais leite por ficar grávida. Então o que faziam? Botaram um boi gay, o touro se satisfazia no boi gay e acabou o problema. Meu pai perguntou se percebi o que tinha acontecido, e eu falei “então a mãe natureza faz seres pra que não se procrie muito”. Depois ele me mostrava porco gay, pato gay, gente gay, normal. Mãe natureza fez, tá muito bem feito. Agora nós não conhecemos mais a mãe natureza. Hoje o ser humano olha pra mata e diz “como é bonita a natureza”, como se ele não fizesse parte. Como assim? Resultado disso é Feliciano, ou “desinfeliciano”, que é uma coisa horrorosa. Você sabe que essa foi a única vez que eu tive vontade de sair do Brasil. Quando as pessoas votaram nesse homem e ele falou em Cura Gay. Falei, gente, nós chegamos ao cúmulo da ignorância, não vou ficar mais neste país. E ninguém fazia nada! E as pessoas que berravam eram usadas pelos calados. (sussurra) Os calados que são os piores. Agora, graças a deus, três dias depois começaram as manifestações de rua e eu falei: “Então não preciso mais sair”.

Tu é anarquista?

Eu não tenho lado político. O mais próximo do que se pode me chamar é anarquista. Mas eu não sou anarquista. As pessoas acham que eu sou de esquerda porque eu perdi a cidadania na época do Médici, fui pra cadeia – violação à Lei de Segurança Nacional. “Você é de esquerda”, não. “Ah, mas você foi presa na época da ditadura”. Eu não sou de direita, nem de esquerda, talvez eu seja de banda. Porque eu não acredito, nunca acreditei em ideal fora do coração. Eu só acredito em ideal no coração. Quando sai do coração e vem pra mente e vira uma bandeira, fudeu tudo. Seja comunismo, seja nazismo, seja PT, seja a puta que pariu… Porque de coração eu tenho que saber que eu não posso puxar teu tapete. De coração eu tenho que saber que eu não posso te explorar. De coração, de coração, de coração. De coração eu tenho que saber que eu não posso deixar você ignorante, que se eu tiver algum caminho pra alguma coisa eu tenho a obrigação de te contar. De coração. Saiu do coração, meu amor, nunca funcionou. Nunca! Meu ex-marido Sacha, falou assim: “Elke, você tem um carma”. Eu falei “eu tenho vários, mas a qual que você se refere?” E ele disse “você nasceu em Leningrado, e vai morrer em ‘Lulagrado’”. Que horror, Deus do céu, eu mereço. Eu tive que ver a dona Dilma na Europa ensinando a Angela Merkel a governar, gente.

O que tu achou disso?

Eu fiquei morrendo de vergonha.

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O que tu acha da Angela Merkel?

Não que eu ame a Angela Merkel, entende? Não é minha paixão, mas, porra! A mulher segura aquela porra com unhas e dentes e aí vem uma PAVERNI da América do Sul, onde não tem educação, onde estamos importando pedreiros, onde não temos médicos, onde não temos merda no cu pra cagar, onde somos roubados, e ela vem querer ensinar pra Angela Merkel a governar? Ai, ai, ai… Não. Gente,  o que é isso? A que ponto nós chegamos?

Tu é contra o atual governo brasileiro?

O último governo que eu gostei foi do Jânio Quadros. Foi triste ele ter que sair, a primeira coisa que Jânio fez quando foi presidente da república foi devolver terra pra índio. Índio só tem terra por causa de Jânio Quadros. Segunda coisa foi botar embaixador brasileiro pra nos representar lá fora. Primeiro mexeu com latifúndio, segundo com os racistas. Terceiro, foi pra Cuba, deixou bem claro que não era comunista, mas que queria que o Brasil fosse livre pra negociar com quem quisesse, inclusive URSS e Cuba, e que ele não ia participar de embargo de porra nenhuma e condecorou Fidel e Che. Deixando bem claro que o Brasil era livre. Livre? (Risos). No fundo realmente, meu amor, a única liberdade que todos têm, além de países, talvez a Mongólia seja livre, a Mongólia é. A única liberdade que nós temos é a de escolher a prisão que a gente quer ficar.

Como foi ficar presa durante a ditadura?

Fiquei presa seis dias. Foi ótimo (Risos). Foi mesmo. Olha, eu sou madrinha dos leprosos, dos loucos de hospício, dos gays, dos presidiários e dos lixeiros de Minas. Uma época, eu ia muito em um hospício, inclusive fui muito amiga de Nise da Silveira – doutora Nise, alagoana, primeira psiquiatra mulher, era sujeito homem, tinha muita coragem. Se formou em 1934 e acabou com o choque elétrico, com drogas para os loucos, ficou amiga de Jung, e eu tive o privilégio de ser amiga dela. E os loucos sempre gostavam de mim, mas em um dos hospícios tinha um louco que não me suportava. Olhava pra mim, baixava a cabeça e saía de perto. Eu vi que ele não tinha nada de louco, ele incomodava muito a família e então prenderam ele no hospício e lá ele começou a incomodar mais. Davam muita droga, muito choque elétrico, pra amansar ele, mas não tinha efeito. Ele era muito forte física e espiritualmente. Então botavam ele na solitária. Um dia eu passei na frente da solitária e falei assim: “Domingos, vim aqui conversar com você. Olha pra mim, poxa. Não é melhor você amansar um pouco? Do jeito que você é as pessoas ficam muito incomodadas e acabam te machucando, te dando drogas, choque elétrico, te botam atrás dessas grades. Você não acha muito chato viver tua vida inteira atrás dessas grades?”. Então ele me olhou, veio até mim [Elke levanta da mesa e grita]; “Quem é você pra me dizer o que eu tenho que fazer, hein?! Depois, é uma questão de perspectiva, meu bem, eu também estou te vendo atrás das grades!” Sentou [ela senta], baixou o olho e nunca mais olhou na minha cara. Peguei meu rabo, botei entre as pernas e fui pra casa ficar digerindo aquilo. Ele era bem mais livre que eu, não fazia concessões. Quando fui presa eu falei: ah, é só um prédio. É só um prédio.

Ser livre é uma coisa que incomoda?

Não, porque ser livre é um trabalho de muitas gerações, não incomoda absolutamente. Mas nós não estamos prontos para isso. A gente tem liberdade de escolher a prisão que a gente quer ficar, tem gente que é até escravo da liberdade, procura tanto a liberdade que fica escravo dela.

O que tu pensa sobre a criminalização das drogas?

Sinceramente, não sei qual é a solução. Agora, uma coisa eu sei, as campanhas que se faz são completamente equivocadas, as pessoas não divulgam que a droga é gostosa. Se tua vida for preenchida de certas coisas, você não vai precisar da droga, ou você vai usar a droga para encontro ou para ritual. Entende? Cada droga preenche alguma coisa que você não tem. Por exemplo, maconha é relaxante. Eu fumando maconha – já fumei muitas vezes -, durmo, porque eu já sou relaxada, não é algo de que eu precise. A cocaína é uma droga de poder, dá a sensação de que você é poderosíssimo. Uma vez em Nova York eu estava numa festa, passou a bandeja, falei que não ia querer. Não, me disseram, cheira porque se não você vai ser execrada. Eu cheirei, meu amor, eu fiquei tão brilhante, tão poderosa que comecei a contar a história do Brasil de 22 de abril de 1500 até então, mil novecentos e oitenta e pouco, o pessoal parou de dançar pra ouvir a história do Brasil, e só tinha três brasileiros. Eu não preciso dessa sensação de poder, mas tem gente que se sente uma merda tão grande, que precisa dessa sensação. É como botar o pau na mesa: eu sou mais do que você, então você vai ter que me engolir. E o que é o máximo hoje em dia, não é o poder? Então pra você tirar a cocaína de uma pessoa você tem que educá-la de um outro jeito, não dizer que o máximo é o poder. Eu também fumei crack, o crack é uma euforia, eu não preciso, mas criança de rua não precisa? Precisa, amor. Pra você tirar uma pessoa do crack, além do problema físico, você tem que dar uma coisa mais gostosa pra ela. E outra coisa, droga não é pra fuga, é pra encontro. A minha geração tomou drogas pra autoconhecimento, agora eu não vejo mais gente tomando droga pra autoconhecimento, eu só vejo ou pra curtir, ou pra fugir. O poder é a pior droga, e ninguém persegue o poder. Quem matou mais, a cocaína ou Medellín? Foi Medellín, não é? O que você tem que fazer? Educar bem as crianças. Eu tive consciência plena, não fiz filho porque eu não sei educar uma criança e porque não posso ter âncoras, filhos são âncoras. Inclusive fiz abortos. Sem a menor culpa, porque, puta que pariu, eu não saberia educar uma criança. Quando você fizer um filho, você tem que estar consciente de que você está dando a vida e está dando a morte.

Os teus abortos foram públicos. Isso nunca foi um arrependimento?

Não, quanto mais velha eu fico, mais eu acho que acertei. Depois, temos 7 bilhões de pessoas no mundo e 1 bilhão e 200 milhões no perrengue. Eu tenho muitos deuses, sou politeísta. Tem uma frase do Álvaro de Campos que eu acho que foi feita pra mim: “Ergo em cada canto de minha alma um altar a um deus diferente”. Eu vejo que as pessoas têm uma ideia muito de gente de deus, “deus é fiel”. Fiel? Fiel é um adjetivo que fizeram pra gente, deus não cabe em um adjetivo que fizeram pra gente. Vai se fuder, deus é fiel. “Deus é bom”, não cabe. Não é. Deus é tsunami. Deus é geleira despencando, deus é tempestade de neve, deus é tempestade de areia. As religiões nos atrapalharam muito. O que essas religiões fizeram? Fora o budismo. O cristianismo, eu adoro Cristo, mas Cristo só trata do homem. E a floresta, que é nossa irmã? E a pedra, que é nossa irmã? E o cavalo? E o rato? E o vírus da Aids? E o tubarão? São todos nossos irmãos. Então, na realidade o que nós fizemos? Botamos um monte de coisa pro homem fazer e esquecemos do tempo em que a terra era sagrada, do tempo em que a floresta era sagrada. Você pedia licença para tirar uma folha, nos tempos em que o mar era sagrado. Para os gregos, era Poseidon, para os romanos, Netuno, para os africanos, Iemanjá, e você não poluía o mar, né? No tempo em que o raio era sagrado, para os africanos, Iansã, o trovão, Xangô, na hora em que a deusa raia e o deus trovão se encontram tem a trepada do céu com a terra, e aí tem o orgasmo que é chuva e a terra germina. Isso é sagrado. Agora nós… no sábado não pode fazer isso, porque segunda não sei o quê, meu deus do céu! Esquecemos a mãe natureza e essa profanação, gente?

Tu tem uma religiosidade própria, sem seguir nenhuma filosofia?

Religar, a vida é sagrada. E ninguém tá tratando a vida como sagrada. Qual é a proposta? Casar, ter filho, ganhar dinheiro, deus é o dinheiro. Antigamente, Cronos na Grécia era o tempo, por isso falamos “cronometragem”, entre os africanos era Ludumaré, tão reverenciado que nem o nome diziam. Aí chega o americano e diz “Time is Money”. E o que fizeram? Não usam mais o tempo para ser, só para ter. Ter não é ruim, não, mas você usar seu tempo todo para ter?

Tem uma frase interessante tua, “a moral não está no meio das pernas”. Tu acha que a sexualidade deveria ser tratada de outra maneira?

Eu nunca fui obediente, mas na minha geração você não podia trepar sem casar. Eu nunca fui mulher, então não tive esse problema, trepei e pronto. Só fazem com você o que você permite. Tem um texto que eu gosto muito, que eu faço no meu espetáculo, de Étienne de la Boétie: “Gostaria de entender, gostaria apenas de entender como é que pode ser que tantos homens, tantas cidades, tantos países suportem, às vezes, uma tirania que tem apenas o poder que eles próprios lhe dão. O que faz com que uma nação trate as outras como escrava e as prive de sua liberdade? Será que não sabem que não é preciso combater essa tirania? Que não é preciso anulá-la, porque ela se anula a si própria. Basta que não se consinta em servi-la. Se nada se dá aos tiranos, se ninguém lhes obedece, sem lutar, sem golpear, eles ficam nus, ficam feridos e não são mais nada, são como o galho que se torna seco quando a raiz não tem nem umidade nem alimento. Decidam não mais servir e estarão livres. Não mais o sustentem e verão como o grande colosso de quem se subtraiu a base pode desmanchar-se com seu próprio peso e desmoronar.” 1460 – Étienne de la Boétie. Só não obedecer, fácil.

Como Gandhi?

Como Gandhi, como Sócrates, como os bolivianos.

Bolivianos da geração Morales?

Antes e em Morales. Ele não é ditador, é um índio que quer proteger sua raça. O índio boliviano é o povo mais ético e honrado do mundo, junto com o Japão. Mas eu admiro mais o índio boliviano, porque ser ético e honrado sem quase nenhum dinheiro é mais difícil. Uma vez eu cheguei para uma senhora da Bolívia, índia, né? Porque o branco boliviano é estragado. Eu cheguei para uma mulher lá e falei, “como vocês bolivianos são diferentes”. Ela falou, “como assim?”. Ela tinha dois dentes na boca, pobre de marré deci. Eu falei o seguinte, “eu sei que vocês tiveram ditadores, mas do jeito que o ditador sobe, vocês fazem huelga general, nem mosquito voa, e vocês só voltam a trabalhar quando o ditador caiu”. Eu falei, “vocês não deixam a doença se instalar”. Por exemplo, eu nasci na Rússia: 70 anos de ditadura, minha mãe era alemã: 20 de ditadura, sou brasileira: 20 anos de ditadura, fora as que tiveram antes, Cuba: 40 anos de ditadura, Argentina: 20 anos de ditadura, e Chile… E 33 anos de um homem só no Paraguai. E a gente que teve ditadura fica “ah, o que a ditadura fez… ah…”. Eu não reclamo, porque eu sou responsável, só fazem comigo o que eu permito, então quando falam pra mim “ah, e a ditadura?”. “Ótima, eu permiti”. Então falei pra ela, “vocês são o único povo que não permitem isso”. Ela falou, “pois é, nós somos o povo mais pobre da América Latina, mas nós nunca remamos a favor da corrente, e a senhora há de entender, tem povos que ainda não são povos, ainda são gado”. Eu fiz mó três vezes: nasci na Rússia, móooo, mãe alemã, móoooo, sou brasileira móoooo. Eu cheguei à perfeição, três vezes gado! Não é uma beleza? Que maravilha aquela mulher, que lição!

Como tu definiria Elke Maravilha?

Como nós todos, não temos definição. Somos tudo, somos santos e demônios,  somos bonitos, somos feios, somos grandes, somos minhocas. Nesse ponto é muito bom ter nascido russa. Freud dizia, o russo e o irlandês são os únicos povos que não precisam de psicanálise porque não têm medo de mostrar sua sombra. Não têm medo de dizer “olha eu sou mau e eu sou bom”, não tem essa de ficar camuflando nada. Porque os outros povos têm medo, só querem mostrar o lado positivo. Eu lembro de quando era pequena, meu pai falou, “filha, o que você estudou hoje?”. “Estudei uma coisa maravilhosa, que o povo brasileiro não é um povo violento”. Ele perguntou,” onde é que você ouviu essa bobagem?”. “A professora que falou”. “A professora fala qualquer merda, você acredita?” Eu falei, “tá escrito aqui, olha pai”. Ele disse, “minha filha, o papel é muito paciente, você escreve qualquer merda nele, ele aceita. Pergunta amanhã se o que fizeram com os negros não foi violência, pergunta amanhã sobre o que fizeram com os índios, quando o português chegou tinha 22 milhões, agora tem uns 400 mil (agora então tem uns 100 mil), cadê? Pergunta se morrer na fila do INPS (na época era INPS) não é violência? Pergunta se deixar uma pessoa analfabeta não é violência? Pergunta!” E eu comecei a perguntar. Aí virei uma pentelha.

 

*Em alguns textos do jornal Tabaré, optamos intencionalmente pela concordância de acordo com a variação linguística porto-alegrense, concordando a segunda pessoa do singular com o verbo da terceira. Nos inspiramos em teóricos linguistas que defendem que a língua deve se adaptar às características locais dos que a utilizam, valorizando as diferenças desse país continental.