Nós, o Tatu e a cidade que não se entrega

Nosso colaborador Alexandre Kumpinski é outro porto-alegrense indignado com a privatização dos espaços públicos da cidade. Na terra do “não pode!”, cada vez mais vozes se levantam contra os desmandos do desgoverno municipal. 

fotos do ato da última quinta-feira por Martino Piccinini

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Uma pessoa com farda, escudo, capacete, colete de proteção e cassetete não precisa (e não pode) bater na cabeça de um cidadão desarmado e depois chutar a nuca dele já caído no chão. Isso se chama, no mínimo, covardia. Um policial não pode encher de porrada uma pessoa só porque ela está segurando uma câmera e filmando o que tá acontecendo. Isso se chama, no mínimo, censura. E covardia. E considerando-se que se fez isso pra proteger de ameaças um boneco de plástico promocional de um evento privado com o logo de uma empresa privada estampado no peito que não deveria estar em local público, bem…então temos na mão uma situação completamente absurda. Povo é o que tínhamos na rua, povo inconformado, que perdeu a paciência, que se sente impotente enquanto a sua própria cidade é entregue na mão de empresas que já começaram a definir como ele deve se comportar em lugares que são essencialmente públicos. O Araújo Vianna e o Largo Glênio Peres não são e não podem ser da Opus, da Coca-cola, da Oi ou de qualquer outra marca. Os campos de futebol do Parque da Redenção e do Parcão não podem ser da Tim. As quadras da orla do Guaíba não podem ser da Pepsi. Não podem ser, porque eles são públicos. E o espaço público é de todos: meu, teu, dele, dela, NOSSO! Por isso eu não admito que a população de Porto Alegre não possa mais sentar na grama do Araújo Vianna desde que ele foi privatizado. Aquele morrinho com grama que envolve o teatro sempre foi um espaço de convivência, de troca de ideias, antes e depois dos shows, ou mesmo em dias sem espetáculo. E espaço de convivência é onde pessoas se conectam, riem, coletivizam, se entendem, se unem. É nesse espaço de encontros reais que a política acontece de fato, democraticamente, e não só nas urnas de dois em dois anos. É por isso que eles têm tanto medo de pessoas juntas. Tudo bem pessoas sozinhas, individualizadas e individualistas, vendo tv e lendo jornais em casa, quietinhas, domadas, entregues. Mas pessoas juntas na rua podem começar a perceber como as coisas à sua volta estão funcionando e começar a exigir o que é seu por direito. E podem se articular pra fazer algo a respeito do que não tá certo. Isso não é bom pra eles. Não mesmo. Então eles proíbem: ninguém mais pisa na grama do Araújo Vianna. Proíbem e colocam grades em volta. E mesmo que tu pague um ingresso pra poder usufruir do espaço, o caminho que te leva das grades que cercam a grama até a porta de entrada do teatro não te dá acesso ao gramado porque agora existe um corrimão de cabo a rabo que não te deixa passar pra lá. Daí mesmo que tu transpasse esse corrimão pulando por cima ou se agaixando por baixo dele, tu não pode pisar na grama, muito menos permanecer. Sentar nela e conversar então, nem pensar. Aliás, pensar também não, de preferência, que não é pertinente pros negócios. Daí assim: não pode, Não Pode, NÃO PODE! E fim de papo.

“Mas essa grama é minha!”
NÃO PODE!
“Eu deveria poder.”
NÃO PODE!
“Mas foi sempre tão bom…”
NÃO PODE!

A cidade não tá aí pra ser aproveitada. Não mesmo. A cidade não é mais pras pessoas. Se tu for pra grama, um monte de seguranças vêm e te tiram. Seguranças privados, de terno preto e fone no ouvido. Eles são vários, eles são bravos e vão fazer o trabalho deles, custe o que custar. São pagos pra isso, afinal de contas. E o trabalho deles é executar as leis criadas por uma empresa que agora manda naquele pedaço:

“Só deixem que bebam o que for comprado aqui dentro. Barrem quem tentar entrar com algo de fora.”
SIM, SENHORA!
“Não deixem que tirem a camisa, nem antes, nem durante, nem depois do show.”
SIM, SENHORA!
“Não deixem que as pessoas interajam na grama ou que fiquem em pé na frente do palco. Queremos que elas venham, consumam, aplaudam e caiam fora, não que participem de fato de alguma coisa.”
SIM, SENHORA!
“Em breve mais ordens, mais leis, mais espaço pra mim.”

Não. Não, senhora. Eu não admito. Eu não admito e vou pra grama. E os seguranças vêm e me tiram. E fazem o que for preciso pra isso, inclusive empurrar, torcer braço e dar chave de pescoço. Em mim, que, sem agredir nem ofender ninguém, só argumentava que deveria poder permanecer ali, na minha, na nossa grama. Mas não, NÃO PODE! Eles me pegam e me tiram, me marcam o braço com apertões, me ameaçam lá fora. Eles são despreparados e não trabalham pra população. Afinal, eles têm um patrão. E o patrão, que manda neles, quer também mandar em mim. Eu não me conformo, eu reclamo, eu me indigno. Mas eu não tenho o que fazer, eu não tenho pra quem reclamar. Eles já me tiraram da grama. E eles podem me tirar da grama, porque agora o Araújo é mais da Opus e da Coca do que meu ou teu, e eles é que mandam agora no NOSSO espaço. Eu não me conformo, eu sigo reclamando e sigo sendo ameaçado. Eles vão me pegar lá fora, eu tô atrapalhando o trabalho deles, se eles fossem da polícia já teriam quebrado a minha cara entre outras frases de efeito. Querem que eu fique quieto. Mas eu não me calo. “Vai reclamar pro prefeito!”, um dos seguranças me diz. E ele tem razão. Foi a prefeitura. Ela que entregou o Araújo. Ela que deveria seguir administrando aquele espaço. Afinal, aquele espaço é NOSSO, eu nunca vou deixar isso de lado. O espaço público é NOSSO! É tão simples, tão claro, tão justo. A prefeitura não pode entregar eles pra empresas sem pelo menos nos consultar antes. A população nunca foi ouvida a respeito do Araújo, das quadras de futebol, da rua do Brique, do Largo Glênio Peres e de todos os outros espaços que tão entregues. Isso simplesmente não é certo. É antiético, é imoral. E a desculpa de que a iniciativa privada melhora o espaço não me serve. A prefeitura deveria ter competência de gerir os espaços públicos por si só. A Prefeitura me dizer que privatiza pra que o espaço melhore é usar a própria incompetência como argumento pra justificar a entrega do que é da população por excelência. Isso tá errado, completamente errado! Tá tudo errado! Mas a prefeitura vai lá e entrega. E por uma penca, uma dezena de anos contratuados. Tá entregue: eu não posso fazer mais nada. Ninguém pode fazer mais nada. Não há pra quem recorrer. Tá entregue. Engole em seco, segura o choro, baixa a cabeça e vai embora, magrão. Tá entregue. Mas não: eles podem até entregar o que é meu, mas não vão me entregar. Eu não vou me entregar. Eu não tenho o que fazer, mas eu faço de qualquer jeito. Chega! Eu e todos os outros que tão vendo acontecer tudo isso que eu tô vendo acontecer. A gente pega aquela lata inflável gigante de Coca-cola que tá na grama do Araújo e arranca ela de lá. A grama é nossa, não da Coca. Nem da Opus. A gente grita, vibra, aplaude. A CIDADE É NOSSA! A lata é arrastada até o meio da rua e vira fogueira. As pessoas dançam em volta, cantam de alegria. Não vamos baixar a cabeça, não vamos deixar por isso mesmo!

No outro dia vai ser o Tatu. O ato se chama Defesa Pública da Alegria e clama contra a situação triste da nossa Porto Alegre. Meu corpo não vai estar lá porque vou estar trabalhando fora da cidade. Mas minha alma vai, acompanhando os amigos e os milhares que também não se conformam. A gente vai brincar, dançar, cantar, pular na frente do prédio da prefeitura. A gente vai gritar bem alto, mesmo sabendo que o prefeito não tá lá pra ouvir. A gente vai gritar que não aceitamos que ele siga entregando a nossa cidade pros conchavos dele. A gente vai gritar que não tá certo remover comunidades pobres de suas casas e jogá-las lá pra bem longe, pra maquiar a cidade pra copa e abrir espaço pra especulação imobiliária. A gente vai gritar que não aceitamos que a prefeitura feche sistematicamente todos os espaços de convivência de Porto Alegre, como aconteceu com os bares na Cidade Baixa. A gente vai gritar que um grupo de cidadãos nas ruas não pode ser considerado “aglomeração indevida de pessoas” como se apresentou como uma das justificativas pro fechamento do Bambus. A gente vai gritar que o Largo Glênio Peres, histórico espaço democrático de manifestações políticas e culturais, do lado da prefeitura, no coração da cidade, também não pode deixar de ser nosso. Aliás, a gente já vinha gritando há muito tempo a respeito desse largo, desde que a prefeitura começou a transformá-lo em um estacionamento pra “melhorar o nível dos frequentadores do Mercado Público” (que fica ali do lado), nas palavras do nosso então Secretário Municipal da Indústria e Comércio (Smic), o Walter Nagelstein, braço direito do prefeito Fortunati em toda essa missão de higienização social e privatizações que tá rolando na cidade. Então, toda terça-feira no fim da tarde, pessoas passaram a se reunir no Largo pra tocar músicas, fazer teatro, malabarismo, jogar bola e dizer que não iriam aceitar que ele virasse, além de suporte pra publicidade de refrigerante, um estacionamento. Porque um largo é pra ser um espaço de convivência, e carros estacionados tomando o espaço não permitem essa convivência. Mas o Largo Glênio Peres já não era mais só suporte pra publicidade da Coca. Já era dela também, gerenciada pela mesma Opus do Araújo Vianna, que é a sua representante de ações de marketing. Baixaram então uma lei proibindo qualquer tipo de manifestação ali, política ou cultural. A cidade não tá aí pra ser aproveitada, de fato. Pelo menos não pela população. E eu me pergunto se vivo mesmo numa democracia, se a ditadura de fato acabou. Tá parecendo que não. Vou repetir, porque é difícil mesmo de acreditar: baixaram uma lei proibindo qualquer tipo de manifestação política ou cultural no Largo Glênio Peres. A desculpa pra esse absurdo? Que as manifestações poderiam estragar o piso histórico do espaço. É de rir, pra não chorar de raiva, de impotência, de desamparo: carros estacionando no piso histórico tudo bem, tudo certo, maravilha. Mas pessoas podem estragar o piso pisando nele, como não? Calhordas! E não pára por aí: esse mesmo piso, alguns meses depois, iria ser parcialmente destruído pra se colocar uma sequência de chafarizes no espaço, de ponta a ponta. Um chafariz que corta o Largo ao meio e que atrapalha concretamente qualquer tipo de aglomeração de pessoas por ali. Um chafariz que foi acionado durante o comício de um dos concorrentes do prefeito nas eleições, molhando pessoas, seus cartazes, suas bandeiras e suas dignidades. Mas não foi só pra instalar essa traquitana que o tão querido piso histórico foi maculado pela mesma prefeitura que havia pouco tempo protegido ele dos tão vis cidadãos que queriam pisar em cima dele sob a indesculpável vontade de exercer sua cidadania. O piso foi destruído também pra se instalar ali um boneco de plástico gigante vestindo uma camiseta vermelha onde se lia “Coca-Cola”. Um totem privado, cravado no meio do espaço público, em meio a toda essa situação. E ao redor desse totem, placas dizendo que “Porto Alegre abre a felicidade no Largo Glênio Peres”, numa referência explícita ao slogan da marca, com o logo da prefeitura e o logo da Coca lado a lado nas placas, do mesmo tamanho. No prédio da prefeitura, a mesma situação: um banner pendurado com os dois logos em igualdade. E a gente começa a se perguntar se a cidade é nossa mesmo. E aquele boneco-tatu-totem-cola tá ali, colorido, divertido, rindo da nossa cara. Um boneco promocional, privado, no nosso chão. No NOSSO chão onde não podemos mais pisar. Só se for pra passar e ir embora. Pra permanecer, pra se manifestar, pra dividir experiência, pra ser cidadão, não.

Então a paciência vai se esgotar. O alvo natural, por ser símbolo cínico erguido diante dos nossos narizes, será o Tatu. Nós seremos muitos ali na praça. É o povo ali na praça. É o povo que não tá disposto a baixar a cabeça e a aceitar. É o povo que tá com tudo engasgado, transbordando. É o povo que sai da frente da prefeitura e vai em direção ao boneco. É o povo que cerca o boneco, que dança, canta, encara e xinga em volta do boneco. É o povo que quer ver aquele pedaço de plástico no chão, e não imperando, imponente, no âmago da nossa cidade. E é o povo que começa a apanhar da polícia antes mesmo de conseguir encostar no boneco. E é o povo que toma escudada na cara enquanto ainda só grita em protesto. É o povo que toma cassetete na cabeça só por estar segurando uma câmera ligada na mão. É o povo, sou eu, são meus amigos, são meus amores, é tu, somos nós que somos massacrados, que temos nossos corpos violentados em nome daquele boneco ridículo e de tudo o que ele representa. São as nossas cabeças abertas, nossos ossos quebrados, nossas câmeras destruídas, nossos direitos destroçados por homens de farda bem equipados. Somos nós que seremos chamados de vândalos, de vagabundos, de bandidos. É contra nós que a grande imprensa vai se colocar ferrenhamente. E é enquanto somos agredidos covardemente que derrubaremos a merda do tatu, em meio a bombas de efeito moral atiradas diretamente na gente, e não em clareiras, como manda a lei. Somos nós em meio a balas de borracha disparadas a poucos metros de distância, que é pra ferir mesmo. Somos nós que vamos ser segurados por policiais à paisana no meio da multidão pra que os outros policiais possam chegar e nos bater, nos derrubar e nos chutar no chão, desarmados. E depois de fazer isso com a gente é que vão jogar a culpa em nós. Pobre Tatu, atacado por vândalos! Na Zero Hora vamos ler “apoio total e irrestrito ao mascote da Copa agredido ontem na capital”, enquanto as nossas feridas ainda sangram. E é ainda com a alma em bugalhos que vamos ouvir o Lasier Martins falar no Jornal do Almoço que somos estúpidos fanáticos que tiveram o que mereceram, e famílias que não entendem muito bem o que tá acontecendo vão concordar com ele entre uma garfada e outra. Seremos nós os culpados pela violência covarde da qual fomos vítimas. Entregaram o que era nosso, não nos deram poder de escolha, nos levaram ao limite, esfregaram tudo na nossa cara e depois nos bateram, nos massacraram. E querem que a gente se cale. Querem que a gente sinta medo. Querem que a gente se entregue. Só que não: nós não vamos nos entregar. Nós não vamos entregar a nossa cidade. Nós não vamos baixar a cabeça. Nós não vamos deixar que o medo tome conta. Nós não vamos deixar de sair pra rua pra cantar, pra gritar, pra xingar, pra conversar, pra existir, pra viver. E pra levar pau se for preciso. E pra derrubar boneco e pra quebrar placa e pra queimar plástico se for preciso. Porque nós enxergamos o que tá acontecendo e não vamos deixar por isso mesmo. Porque nós somos muitos e seremos cada vez mais. E lutaremos pelo que é nosso, mesmo que isso signifique sermos considerados vagabundos, bandidos, marginais. Porque o que é NOSSO, É NOSSO! E NÃO PODE DEIXAR DE SER!